Deus o Abençoe…

Num país onde não é politicamente correto falar de religião em público, para não ferir suscetibilidades, e onde se questiona até a existência de crucifixos nas paredes das escolas, é curioso constatar, em contraste com a prática habitualmente seguida, os que procedem de maneira diferente e não se importam de manifestar a sua fé, seja…

Num país onde não é politicamente correto falar de religião em público, para não ferir suscetibilidades, e onde se questiona até a existência de crucifixos nas paredes das escolas, é curioso constatar, em contraste com a prática habitualmente seguida, os que procedem de maneira diferente e não se importam de manifestar a sua fé, seja em que situação for.
Na minha profissão vejo de tudo um pouco, desde os que são tementes a Deus e O põem acima de tudo e sempre em primeiro lugar, utilizando expressões comuns: «Graças a Deus isto e aquilo…», «Até à próxima consulta, se Deus quiser…», até àqueles que tudo fazem para esconder a fé. Todas as posições são respeitáveis e têm a ver com a maneira de ser de cada um e a sua forma de estar na vida. 
Contudo, sempre achei muito curioso o modo como alguns utentes se despedem, em especial os de etnia cigana, deixando-me sempre intrigado. No final da consulta, concretamente na despedida, não há nenhum que não diga: «Deus o abençoe…». Já por diversas vezes me interroguei (sem nunca o revelar) qual a relação que esta gente tem com Deus para proceder assim? Como deverei eu responder ao ouvir tal saudação? Qual o significado real destas palavras para eles?
Ainda não há muito tempo recebi um casal na consulta, pouco tempo depois de ter havido uma greve de médicos. Corretos e respeitadores como sempre, perguntaram-me timidamente se os médicos também faziam greve. «É um direito de todos os trabalhadores, mesmo dos trabalhadores médicos», respondi eu, explicando-lhes o que pensava sobre o assunto. «E o senhor doutor fez greve?». Voltei a responder: «Não fiz, pois não consegui acautelar a tempo e horas os problemas dos doentes, que devem estar sempre em primeiro lugar. Se aderisse à greve, prejudicaria imensa gente que, sem ter culpa nenhuma dos meus problemas laborais, iria pagar como se tivesse». Ouvindo a minha explicação, a resposta deles foi também: «Deus o abençoe!».

Não foi por acaso que trouxe aqui este tema. É importante refletir sobre o assunto e falar claramente e sem rodeios no problema. Não gosto de utilizar a palavra ‘reivindicações’, pois prefiro falar antes em ‘chamadas de atenção’ – sem dúvida necessárias enquanto funcionário de um Serviço Nacional de Saúde cuja reestruturação se adia constantemente.
Nesta última – assim como nas outras paralisações – estão em jogo questões que afetam todos os médicos, independentemente da carreira a que pertencem. Por exemplo, na minha área – médicos de família com listas grandes – significa que vão ser procurados diariamente por inúmeros utentes, para além do agendado, exercendo uma ‘pressão’ sobre os serviços difícil de controlar, geradora de confusão e instabilidade. 
A falta de pessoal é mais do que evidente, obrigando quem está ao serviço a um esforço suplementar, sacrificando a qualidade. Em vez de um trabalho em equipa, instala-se o ‘salve-se quem puder’. Progressões nas carreiras e revisão das condições remuneratórias é assunto sempre adiado. Afinal, que estímulo temos nós no dia-a-dia? É assim que o Estado quer fixar nos quadros os seus funcionários, levando-os a rejeitar o setor privado?

Contudo, aquilo que mais me marcou e chamou a atenção foi ouvir na televisão o senhor ministro da Saúde a falar sem receio do tal politicamente correto. 
Ao ser questionado sobre a greve dos médicos, respondeu, para espanto de muita gente, que «os médicos tinham razão». Fiquei surpreendido – e ainda hoje comento a sua posição, por não estar à espera de tal frontalidade. Declarações destas, de grande categoria e dignidade, marcam a diferença e deixam antever uma mudança.
Bem-haja, senhor ministro. Aprecio a sua coragem!
Deus o Abençoe!
 

Luís Paulino Pereira

Médico