A disciplina académica e a desobediência de Rodin

Pose e Variações, na Gulbenkian, reúne obras-primas da escultura francesa do século XIX, de Pigalle a Rodin. Algumas vieram de Copenhaga, de uma coleção iniciada pelo filho do fundador da cerveja Carlsberg.

Situado nas imediações de Montmartre – o bairro da boémia e dos artistas -, a Praça Pigalle, em Paris, possui também uma tradição libertária que se confunde até com má reputação. Deve, no entanto, o seu nome a uma figura do Antigo Regime, Jean-Baptiste Pigalle (1715-1784), um dos onze artistas representados na exposição Pose e Variações – Escultura em Paris no Tempo de Rodin, patente até 4 de fevereiro do próximo ano na Fundação Calouste Gulbenkian.

A mostra reúne trinta obras – «não são muitas, mas vão-nos permitir falar de todas as correntes» do século XIX, explica a curadora Luísa Sampaio – de duas coleções privadas: a da Gulbenkian e a da Gliptoteca Ny Carlsberg, em Copenhaga, criada pelo filho do fundador da cerveja Carlsberg, Carl Jacobsen. Com um fabuloso acervo de obras desde a Antiguidade ao século XX, a Gliptoteca Ny Carlsberg é, provavelmente, a melhor coleção de escultura da Dinamarca e uma das melhores do mundo.

A génese de Pose e Variações remonta há três anos, como explica Penelope Curtis, a diretora do Museu Gulbenkian. «Quando cheguei à Fundação o presidente da Fundação Ny Carlsberg veio logo ter comigo dizer que seria ótimo fazermos alguma coisa juntos, porque sempre pensou que Jacobsen e Gulbenkian tinham paralelos. Poderíamos tê-lo feito de diversas maneiras mas a escultura francesa é tão forte em Copenhaga e, embora a nossa seja muito mais pequena, surpreendentemente tínhamos vários pontos em comum».

A obra de Pigalle, a mais antiga da mostra da Gulbenkian, representa um bebé rechonchudo (é notável como o mármore consegue mimetizar as pregas na pele e as carnes tenras da criança) com um passarinho morto ao lado. «Esta escultura do Pigalle era famosíssima, foi apresentada no Salon de Paris. E tinha um par em que o pássaro se mantém vivo e esta em que o pássaro aparece sufocado pela criança», explica Luísa Sampaio, que relaciona a obra com «um discurso ainda do Antigo Regime», muito relacionado com o mundo do teatro e da «pequena comédia».

Daqui em diante vamos assistir a uma sucessão de estilos e correntes artísticas que mostram que não é só hoje que o mundo está em mudança permanente e acelerada. «O século XIX é um século extremamente rico, percorrido por variadíssimas correntes artísticas: neoclássico, romantismo, realismo, academismo, simbolismo, neo-barroco e ecletismo», explica Luísa Sampaio.

 

Tudo começa no esboço

Um dos representantes do ecletismo é justamente Jean-Baptiste Carpeaux (1827-1875), «um escultor do fim do Segundo Império, início da III República». Ainda no primeiro núcleo encontramos o seu Cupido Ferido. «É o filho do Carpeaux que aqui está representado», esclarece a curadora. A criança «tinha magoado um braço e Carpeaux obrigou-o a posar incessantemente – temos registo, pela irmã, de que foi uma tortura…».

Também de Carpeaux é uma Flora acocorada que surge em três versões. Penelope Curtis nota que um dos objetivos da exposição é justamente mostrar que «é muito raro uma escultura ser única, há sempre outras versões, bronzes, gessos, mármores, e aqui podemos ver a mesma escultura em materiais e escalas diferentes». No estudo preparatório em terracota, Luísa Sampaio chama a atenção para o facto de se adivinhar «o polegar do artista a moldar a figura. Onde é que está a arte? Está na criação, numa ideia, começa tudo neste esboço».

Essa não é a única obra inacabada em exposição. Adiante, encontramos uma pequena estatueta de Edgar Degas (1834-1917). «No momento da sua morte em 1917, Degas deixou mais de 70 esculturas em cera que foram depois passadas a bronze. Estão hoje em Washington, Nova Iorque, Paris… e na Ny Carlsberg Glyptoteket em Copenhaga», diz Luísa Sampaio. O artista nunca pretendeu expô-las, tendo apenas apresentado uma escultura em vida, no Salon de 1881, Petite Danseuse de Quatorze ans. «Foi um escândalo monumental no Salon, não só porque a rapariga tinha um rosto simiesco como se apresentava de corpete e tutu: ele foi tão realista que trouxe os elementos do vestuário para a escultura».

Curiosamente, passou-se algo idêntico com A Idade do Bronze, criada por Auguste Rodin (1840-1917) em 1875-1876. Hoje é uma obra tão famosa e consensual que nos custa a crer que tenha estado no centro de uma controvérsia. «Rodin é tão realista que foi acusado de ter pegado no modelo, passado a gesso e feito uma versão definitiva. Era uma figura perfeita do ponto de vista físico, uma figura inocente que acordava para o mundo, daí chamar-se a Idade do Bronze», continua Luísa Sampaio. A discussão lançou o escultor para a celebridade.

Não foi por acaso que coube a Rodin promover uma renovação profunda na arte da escultura – francesa e não só. «Rodin chumbou várias vezes a admissão e nunca conseguiu entrar na Academia», comenta a curadora. Essa aparente desvantagem competitiva acabaria por revelar-se preciosa. Liberto da pesada bagagem académica – que incluía o estudo da anatomia e da perspetiva, mas também da História e da mitologia -, o escultor pôde liderar uma viagem arriscada rumo à arte do futuro.