O edifício mais feio do mundo

Só recentemente vim a perceber que parte do desprezo a que o Palácio de Justiça foi votado advém do facto de ter sido construído com dinheiro obtido com a exploração do Congo, onde foram cometidas terríveis atrocidades pelos belgas.

Que os livros nos levam a viajar não é novidade nenhuma. Já muitos escreveram acerca da sua capacidade de nos transportar para lugares ou tempos distantes – se não fisicamente, pelo menos na imaginação.

O que nunca me tinha acontecido era meter-me num avião para visitar uma cidade, como fiz recentemente, por causa de um livro. De facto, foi depois de ter lido uma passagem do romance Passos Perdidos, de Paulo Varela Gomes, que meti na cabeça que um dia haveria de visitar a ilha de Malta. «La Valletta é a cidade mais bonita do mundo», diz uma das personagens. Na altura, numa entrevista por email ao autor (que já se encontrava demasiado doente para responder de outra forma), perguntei-lhe se essa era também a sua opinião: «Sim. Tenho o meu top 10 de cidades do mundo – toda a gente tem, se pensar nisso. Valletta está em primeiro lugar seguida de Paris e do Rio». Por estes dias pude verificar porquê.

Curiosamente, Passos Perdidos fala também daquele que é considerado um dos edifícios mais feios do mundo, o Palácio de Justiça de Bruxelas. Em bom português, um tremendo mamarracho. Pelo menos assim me foi apresentado quando o vi pela primeira vez. Estávamos na capital belga numa viagem de estudo, e um dos meus colegas perguntou ao professor que edifício era aquele. Convém referir que o Palácio de Justiça é tão monumental – gigantesco talvez seja um adjetivo mais adequado – que a sua cúpula, a cem metros de altura, se avista a partir de quase toda a cidade. Mesmo assim foi preciso o meu colega perguntar para o professor se dignar referir-se-lhe. Até aí, tinha-o ignorado, como se simplesmente não existisse ou fosse uma espécie de mancha cinzenta na cidade.

«Ah, aquela coisa horrível… É o Palácio de Justiça, o edifício mais feio do mundo». E mais não disse. De certo modo, fiquei aliviado por não ter sido eu a fazer a pergunta… Mas ao mesmo tempo esse desprezo não batia certo com o que eu tinha visto. Que raio! Uma construção centenária, importante, enorme (a maior da Europa feita no século XIX) – e tudo o que havia para dizer era aquilo?

Só recentemente vim a perceber que parte do desprezo a que o Palácio de Justiça foi votado advém do facto de ter sido construído com dinheiro obtido com a exploração do Congo, onde foram cometidas terríveis atrocidades pelos belgas.

Paulo Varela Gomes, que não esconde o seu fascínio pelo edifício, avança outra explicação: «Talvez só os norte-americanos possam valorizar o Palácio de Justiça […] porque foi feito à escala dos edifícios contemporâneos deles, mas também porque só na América foi verdadeiramente compreendida a arquitectura romana». Di-lo pela boca de C. Brandon, o protagonista, professor e estudioso, como ele, da história da arquitetura. No fundo, um alter ego do autor – que aproveitou estes Passos Perdidos para nos deixar a sua última lição.