Casa onde vive Sócrates era de magnata angolano

Apartamento hoje ocupado pelo ex-primeiro-ministro passou para as mãos do seu primo que vive em Benguela através de uma transação ‘nada normal’. Antes pertencia a milionário angolano.

A nova casa para onde José Sócrates se mudou há cerca de um mês, na Ericeira, e que se sabe agora estar em nome do seu primo José Paulo, constitui um verdadeiro mistério, recheado de factos suspeitos.

José Paulo Bernardo Pinto de Sousa, que reside na cidade angolana de Benguela, está acusado pelo Ministério Público de ser um dos testas-de-ferro de Sócrates (por ter recebido parte das ‘luvas’ que eram destinadas ao ex-primeiro-ministro) e declarou na Operação Marquês que está falido. Segundo os documentos a que o SOL teve acesso, o apartamento tornou-se sua propriedade através de uma transação pouco comum: uma dação feita por um rico e conhecido empresário angolano que alegadamente lhe deveria meio milhão de dólares americanos, mas que não é comprovada no ato de escritura pública, realizada em 16 de outubro deste ano. Não só não foi comprovada como se afirmou que o imóvel é para «abatimento» da dívida, da qual ainda resta ao empresário – que tem uma vasta fortuna, sublinhe-se – pagar «51 mil euros e 74 cêntimos» para conseguir liquidá-la.

Esta transação, por outro lado, foi efetuada por um advogado que atuou com uma procuração em representação tanto de José Paulo como do anterior proprietário, Fernando Anjos Ferreira, o referido empresário. Esta dupla representação é considerada por fontes dos meios forenses e empresariais contactadas pelo SOL «nada normal, para não dizer mesmo irregular».

O responsável pela operação foi José Filipe Morais Alçada, advogado português em Luanda com ligações a Hélder Bataglia – o homem que confessou ter feito, a pedido de Ricardo Salgado, transferências que totalizam 12 milhões de euros para Sócrates entre 2007 e 2008 e que é também arguido na Operação Marquês. Alçada trabalhava à época para o escritório em Luanda de Ana Bruno, advogada de há muitos anos nos negócios de Bataglia, do qual aliás foi sócia na Akoya (a sociedade suíça de gestão de fortunas que esteve no centro dos esquemas de evasão fiscal do caso Monte Branco).

Advogado ‘partilhado’

No ato da escritura da casa na Ericeira que Sócrates agora habita, Alçada apresentou-se com duas procurações, realizadas em Angola, com escassos dias de diferença: uma procuração feita em Benguela no dia 18 de julho passado, em que José Paulo lhe dá plenos poderes para atuar em seu nome, nomeadamente, «receber do senhor Fernando Anjos Ferreira» a referida casa na Ericeira; e uma procuração feita em Luanda no dia 23 de julho, em que Fernando Ferreira lhe dá plenos poderes para o «confessar devedor» de 500 mil dólares a José Paulo e, «para pagar essa quantia, dar ao referido José Paulo» a casa da Ericeira, «avaliada em 380 mil euros».

Segundo a redação feita pelo notário na escritura, curiosamente já efetuada em Lisboa, neste ato «foi declarado» por Alçada «que o seu representado Fernando dos Anjos Ferreira tem uma dívida ao seu representado José Paulo Bernardo Pinto de Sousa de 500 mil dólares americanos contra valor de 431 mil euros e 64 cêntimos». É para saldar essa dívida que «dá» a casa de que é proprietário na Ericeira. De seguida, o advogado «declara que, em nome do seu representado José Paulo Bernardo Pinto de Sousa, aceita a presente dação em cumprimento e, em consequência, declara que a referida dívida fica reduzida ao montante de 51 mil euros e 74 cêntimos».

A casa em causa, e onde Sócrates está agora a viver, tendo abandonado o andar no Parque das Nações, em Lisboa, é um apartamento T4 com 312,25 metros quadrados, num prédio de três pisos e com vista de mar, em plena vila da Ericeira. Imóveis semelhantes da zona estão à venda em imobiliárias por valores que oscilam entre 365 mil euros e 495 mil euros.

Além da forma pouco habitual como a casa chegou às mãos do primo de Sócrates, fontes empresariais contactadas pelo SOL confessaram surpresa por um empresário com fortuna como Fernando dos Anjos Ferreira ter pago uma dívida desta forma e com a particularidade de ainda terem ficado «51 mil euros e 74 cêntimos» por pagar, suspeitando que «este pormenor serve apenas para dar credibilidade à suposta divida».

Já para fontes do meio judicial, o que ressalta é outro aspeto: «Estas dações em pagamento de dívidas e sem documentos comprovativos são a melhor forma de fazer circular capitais sem deixar rasto quanto à origem do dinheiro». Acrescentando que «numa transação normal tem de constar numa escritura o cheque ou o banco de onde é feita a transferência, o que lançaria as autoridades no rasto do dinheiro e de capitais ainda escondidos em alguma offshore, ainda para mais tratando-se de uma pessoa que até se declara falida».

Multimilionário angolano

Fernando Anjos Ferreira é dono da EFES – Empreendimentos – empresa nascida em 1999, em Luanda, que, segundo a história relatada no respetivo site, «rapidamente estende a sua atuação às províncias de Kwanza Sul, Kwanza Norte, Malange e Huambo». «Na conjugação de diversos fatores, mas essencialmente, fruto da grande visão do seu fundador, Fernando dos Anjos Ferreira» – acrescenta-se – «a empresa começa a desenvolver, construir e comercializar empreendimentos habitacionais de gama acessível. Numa conjuntura em que o grosso do investimento era canalizado para projetos de gama alta, no sentido da especulação imobiliária, a EFES inicia projetos habitacionais de gama baixa».

A EFES Empreendimentos tornou-se, por isso, «reconhecida como parceira do Estado nos seus objetivos sociais». O grupo de Fernando Ferreira cresceu e alargou horizontes, para mercados como «Brasil, Moçambique e Portugal», em negócios que hoje, além da construção e do imobiliário, também incluem setores como as bebidas, telecomunicações e energias renováveis.

Contactado pelo SOL, José Alçada, que garante ter representado o primo de José Sócrates por com ele manter uma relação de amizade e confiança, disse desconhecer a natureza da dívida e reconheceu: «Aprendi a lição». Segundo o causídico, nunca os seus clientes lhe apresentaram documentos sobre a dívida em causa: «Entreguei no notário a informação que tinha e ele também nada  mais me pediu. Por isso sempre pensei estar perante uma operação legal».