70 anos: afinal, quem é, na verdade, Marcelo Rebelo de Sousa?

Falar, pois, de Marcelo suscita sempre o receio de desmentir a nossa proclamada convicção da imprescindibilidade da manutenção de um distanciamento crítico mínimo entre o analista e os actores desse filme que á a atualidade política

1.Escrever sobre Marcelo Rebelo de Sousa constitui, para o autor das presentes linhas, sempre desafio hercúleo. Isto porque somos subscritores de uma tese – hoje deveras rara no panorama comunicacional português – segundo a qual a análise política deve pautar-se pela objectividade, embora possa compreender elementos de subjectividade dos protagonistas (não do analista).

Deve dar prevalência à razão sobre a emoção. Deve cingir-se ao que é, sem apelos pífios ao que deveria ser – o que não significa, contudo, a renúncia a uma pauta valorativa tida, por nós, como incontroversa. Como é público e notório – quer por intervenções e posicionamentos políticos pretéritos, quer por declaração de interesses já efectuada em prosas anteriores -, liga-nos a Marcelo Rebelo de Sousa uma admiração confessa pelo percurso pessoal, comunicacional e académico; bem como a amizade forjada em circunstâncias várias, psicologicamente já distante, não obstante a nossa juventude relativa.

Falar, pois, de Marcelo suscita sempre o receio de desmentir a nossa proclamada convicção da imprescindibilidade da manutenção de um distanciamento crítico mínimo entre o analista e os actores desse filme (sempre estimulante e imprevisível, conquanto, por vezes, perigoso) que é a actualidade política.

2.Convém, por conseguinte, adiantar aqui que desde que Marcelo Rebelo de Sousa tomou posse como Presidente da República, reduzimos ao mínimo (menos que) essencial as nossas conversas e praticamente nunca nos vimos. Analista político não é protagonista político; protagonista político não é analista político (se bem que, neste particular, temos cumprido melhor a nossa função do que Marcelo a dele…).

Vêm tais considerações na sequência da centralidade mediático-informativa que foi conferida ao aniversário de Marcelo Rebelo de Sousa, comemorado hoje, dia 12 de Dezembro. Há quem diga, com convicção acentuada, que o destaque dado a esta efeméride se deve à necessidade de os jornalistas esconderem, ao máximo, a iminência de ruptura social provocada pela governação desastrosa de António Costa (que os jornalistas querem à força tornar o melhor Primeiro-Ministro de todos os tempos…). No fundo, trata-se de manobra clássica para distrair as atenções dos portugueses…

Outros afirmam, com não menos convicção, que a notícia do aniversário de Marcelo se justifica por razões de índole comercial – Marcelo Rebelo de Sousa vende. E é barato; e não dá trabalho.

Ora, como a preocupação cimeira do jornalismo actual é vender, e já não informar – eis que os setenta anos de Marcelo são dinamite para excitar as redacções nacionais.

3.Em qualquer caso, independentemente da discordância quanto ao interesse jornalístico de elevar tal marco a capa de um jornal dito de referência como é o “Público”, justifica-se que assinalemos o número redondo de anos perfeitos pelo nosso Presidente da República. Calma, calma, caríssimas leitoras e caríssimos leitores, não iremos aqui repetir o que já foi escrito à exaustão sobre a vida de Marcelo (que alguns jornais diários já trataram de nos relembrar, pela enésima vez nos últimos anos, hoje).

Iremos, isso sim, aproveitar o ensejo simbólico para traçar – ainda que em termos necessariamente telegráficos – a evolução da personagem política de Marcelo Rebelo de Sousa, concatenando-a com o seu contexto, público e privado.

4.Ora, Marcelo Rebelo de Sousa nasceu a 12 de Dezembro de 1948, em São Sebastião da Pedreira, Lisboa.

No mundo, vivia-se, ainda, o rescaldo dos anos horrendos da Segunda Guerra Mundial, desdobrando-se o mundo em explicações para explicar o inexplicável – como um homem, com ar patético como era Adolf Hitler, formado nos quadros mentais do marxismo e de uma certa concepção do socialismo radical, convenceu todo um povo a embarcar na maior loucura criminosa da história da humanidade (a reflexão, acrescentemos, ainda não está fechada…).

Os Rebelo de Sousa – Baltazar e Maria das Neves – são figuras cimeiras do “Estado Novo”, exercendo o primeiro funções de relevo na organização da Mocidade Portuguesa. O pequeno Marcelo Nuno adere à Mocidade, como era mister nos tempos idos do salazarismo, absorvendo a doutrina oficial do regime.

É nos anos de infância e pré-adolescência que Marcelo escreve a famosa missiva dirigida ao Presidente do Conselho, Oliveira Salazar, manifestando-lhe apoio convicto; Salazar acabaria por retribuir a simpatia, oferecendo ao infante Marcelo Nuno livros de política e Direito, que iriam influenciar, mais tarde, as suas opções de carreira e académicas.

Dos tempos da Mocidade portuguesa, Marcelo conserva, até hoje, o seu lado mais conservador (o Presidente da República é muitíssimo mais conservador do que nós, na essência, não obstante o que insinua a aparência…); e um cinto com as iniciais do seu nome gravadas, que, antes de tomar posse, Marcelo utilizava amiúde nos seus passeios em Cascais.

Temos, pois, a primeira fase de Marcelo, que vai desde o seu nascimento até à sua entrada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa– a do jovem nacionalista, defensor entusiasta de Salazar e do salazarismo, Marcelo Nuno.

 

5.Passemos à segunda fase, que se inicia, como dissemos, com a entrada de Marcelo na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1966.

Aqui, Marcelo começa a distanciar-se progressivamente de Salazar, que não propriamente, ainda, do Estado Novo. Interessante notar que as tergiversações políticas de Marcelo Nuno (como era então tratado, especialmente pelo seu padrinho efectivo, que não oficial – esse era Camilo Mendonça, primeiro Presidente da RTP – , Marcello Caetano) reflectem, na verdade, as oscilações e tensões internas do próprio regime: após a Segunda Guerra Mundial, o salazarismo sofreria  a mais forte e letal contestação, que deixaria marcas até ao fim dos seus dias, promovida por sectores oposicionistas (destaque para a campanha presidencial de Humberto Delgado), uns comunistas, outros moderados; a cisão entre republicanos e monárquicos reacender-se-ia, com o embate entre as personalidades díspares de Marcello Caetano e Santos Costa, cada qual com os respectivos séquitos; Marcello Caetano acabaria por sair do Governo, regressando às lides académicas e iniciando um percurso, relativamente longo e consistente, de conspiração política militante. O seu grupo – que era também o de Baltazar Rebelo de Sousa – reunia, preferencialmente ao fim de semana, no Restaurante Choupana (perto do Estoril).

Temos, pois, que o Estado começava a apresentar sinais de divisão irremediável, com Oliveira Salazar a perder parte da sua autoridade e prestígio entre as elites do regime. E a família Rebelo de Sousa sente essa divisão: Baltazar Rebelo de Sousa sente gratidão pelo trabalho de Oliveira Salazar, na estabilização do regime após o caos institucionalizado que fora a I República; contudo, sente, de forma ainda mais intensa, afinidade político-ideológica e afectividade fraternal com Marcello Caetano.

Em 1966, o Estado Novo está dividido entre a facção que lhe deu vida (a de Salazar e o seu conservadorismo “teocrata secular”) – e a facção que lhe queria dar uma nova vida, liderada pelo ex-delfim do Presidente do Conselho, Marcello Caetano.

Já a família Rebelo de Sousa, encontra-se dividida entre a lealdade de sempre a Salazar; e a lealdade que haveria de ser para sempre a Marcello Caetano.

6.E o jovem Marcelo Nuno? Marcelo Nuno ingressa na Faculdade de Direito como salazarista já distante – as suas participações, juntamente com seu pai, no grupo da Choupana haveriam de estimular a rebeldia feroz que o caracterizaria nos anos vindouros.

Marcelo Nuno era um  católico ultra-conservador em transição do “corporativismo autoritário” para uma “ditadura com elementos liberalizantes controlados”, como foi a Primavera Marcelista. A referência máxima de Marcelo era…Marcello; e Marcello admirava especialmente Marcelo.

A partir, porém, do terceiro ano da Faculdade, Marcelo Nuno iria começar a irritar solenemente Marcello Caetano, já feito Presidente do Conselho.

Isto porque o jovem estudante de Direito iria começar a relacionar-se com elementos da oposição democrática, não reconhecida pelo regime – e a fazer o jogo da “Ala Liberal” que exigia uma liberalização mais rápida das estruturas jurídicas, políticas e sociais do regime. A isto acresce a admiração ilimitada e o amor filial que Marcelo Nuno sente por Marcello Caetano.

Politicamente, Marcelo Nuno sente-se, pois, profundamente dividido, entre aquilo que ele antevê ser o futuro certo; aquilo que ele pressente ser o passado com um futuro sombrio e com um presente incerto; e, enfim, aquilo que ele analisa ser a sua ponte ideal entre o pretérito político a que pertenceu e o futuro político a que quer pertencer.

Marcello Caetano, entretanto, trata com dureza, distanciamento e indiferença o jovem Marcelo Nuno; este, que nunca esquecerá o seu pai académico e político, sente-se emocionalmente desamparado, sendo que não conseguirá esconder as lágrimas provocadas pela deserdação que sofrera por parte do Presidente do Conselho.

7.O Estado Novo caminha, entretanto, para o fim. E em 25 de Abril de 1974 dá o passo decisivo para o abismo, pressionado pelo movimento dos capitães.

A  democracia chega a Portugal. Partidos políticos começam a ser formados e devidamente institucionalizados.

A direita democrática demora a reagir; reage, de forma tímida como as circunstâncias porventura terão imposto, com a criação do PPD e do CDS. E Marcelo Nuno torna-se, já então, o “enfant terrible” do PPD, amplificando a sua intervenção política através da “página dois” do EXPRESSO.

8.O que fica deste período, provavelmente o mais marcante, em Marcelo Nuno, ora convertido (definitivamente) em Marcelo Rebelo de Sousa? Três traços que não mais o largariam:

1)O jogo de cintura permanente: a política é uma questão de gestão de expectativas, de movimentos de sentido díspar, de mutação constante. Importa, pois, ao agente política moldar tais expectativas; perceber e tentar condicionar as forças da mudança; estar no presente, sem prejudicar as hipóteses de estar no futuro (tão bem ou, desejavelmente, melhor). Marcelo Rebelo de Sousa é mestre mais na capacidade de gestão da conjuntura, só ousando gizar o futuro quando (e na medida em que) este é certo; do que na previsão, antecipação do futuro da Nação. Prefere, enfim, ideias para hoje, para resultados imediatos – do que ideias que sejam construção de projectos demorados, cujos resultados pareçam demasiado longínquos;

2)A traição de um “pai”, de Mestre académico e político, é a principal fonte de vingança em política: a rebeldia política de Marcelo Rebelo de Sousa nasceu fruto da sua necessidade de marcar posição junto de Marcello Caetano. É que, como o Professor clássico de Direito Administrativo sempre se distanciou de Marcelo Nuno, nunca elogiando e até criticando os seus trabalhos, nunca o chamando para colaborar consigo e nunca ouvindo as suas opiniões políticas (pelo menos, nunca as levando a sério) – Marcelo Rebelo de Sousa precisou de se fazer ouvir, de marcar presença, de começar a construir a sua “autorictas” junto do seu pai afectivo. E a melhor forma de o conseguir foi através de artigos de opinião, de afirmações políticas bombásticas e que se sabe provocar ira naqueles que são visados indirectamente. Em suma, Marcelo Rebelo de Sousa, melhor do que ninguém, sabe que não há nada mais letal politicamente do que críticas (inteligentes e certeiras) feitas por ex-discípulos aos Mestres;

3)Marcelo escolheu o PPD como sua família política mais por razões de tacticismo e conjunturais – do que por razões estratégicas e estruturais. Porquê? Fácil. O PPD assumiu-se, para Marcelo, como a ponte perfeita entre o Estado Novo e a democracia; permitiu-lhe passar da elite do regime anterior para a elite do regime ora criado. O PPD havia sido suficientemente distante da ditadura para não ser acusado de conivência com o “fascismo”(utilizando o jargão da esquerda); o PPD havia de manter a prudência necessária face à Revolução de 1974 para não abraçar radicais de esquerda e os seus projectos de destruição de Portugal, os quais teriam condenado Marcelo Rebelo de Sousa por colaboracionismo com o regime anterior. Por outro lado, Marcelo Rebelo de Sousa não poderia aderir ao PS – neste partido, não teria espaço de manobra, atendendo à sua falta de “pedigree político” por não ter entrado na clandestinidade e na “luta de rua” contra o salazarismo. Ora, esta adesão ao PPD por razões tácticas, mais do que estratégicas ou de convicção, por parte de Marcelo Rebelo de Sousa haveriam de explicar a relação difícil que ainda hoje mantém com o partido.

9.Por ora, quedemo-nos por aqui na análise do nascimento e desenvolvimento político de Marcelo Rebelo de Sousa, concatenando-o com o contexto político português – analisar Marcelo é analisar a evolução da  história política portuguesa.

Atendendo à dimensão da presente prosa, já excessiva face à paciência de quem nos lê, guardemos para próxima prosa, aqui no “SOL”, a explanação das fases subsequentes, correspondendo já ao período de estabilização plena da democracia constitucional.

P.S – Não podemos, porém, adiar para amanhã o desejo que se impõe hoje; por conseguinte, formulamos aqui, depois de já o termos feito pessoalmente, votos de muitos parabéns para o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa!

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