No tempo em que os animais pintavam

Monstros, pessoas que se comportam como animais e animais com todos os defeitos dos seres humanos: é assim a exposição Paula Rego – Anos 80, para ver até maio do próximo ano na Casa das Histórias

No tempo em que os animais pintavam

Desde que, no século IV a. C., o filósofo grego Aristóteles tentou ‘arrumar’ a realidade em categorias e, para isso, definiu os grandes princípios da física e da biologia, o Homem habituou-se a ver-se como um animal à parte, uma espécie de eleito que se distingue de todos os outros seres pelo uso que faz da razão. No entanto, a própria imaginação humana sempre sabotou essa divisão radical, criando figuras híbridas como harpias, esfinges, faunos e minotauros.

A exposição Paula Rego – Anos 80, patente até 29 de maio de 2019 na Casa das Histórias, em Cascais, mostra como também a pintora portuguesa diluiu na sua obra as fronteiras entre o humano e o animal, entre a razão e o instinto, entre a civilização e a natureza. O mote é dado por um pequeno desenho de 1952 que mostra uma mulher transfigurada em bicho, apoiada sobre ‘quatro patas’, com uma boca cheia de dentes arreganhados e uma sugestão de cauda.

E o que faz uma obra tão recuada numa exposição cujo enfoque são os anos 80? «É o primeiro ensaio que a Paula Rego realiza sobre o que é isso de nos tornarmos animais, o que é esta relação com a animalidade que está sempre em nós», adianta Catarina Alfaro, coordenadora de programação da Casa das Histórias. «Quando exprimimos sentimentos como a raiva, os nossos comportamentos não são tão humanos, são mais animais. Mais tarde Paula Rego vai desenvolver este tema da mulher-cão nos anos 90, já com a Lila Nunes [cuidadora do marido da pintora quando este se encontrava acamado, e mais tarde colaboradora da artista] a servir-lhe de modelo».

Obras como esta sugerem que a artista começou a libertar para a tela emoções que antes estavam «recalcadas», considera a responsável. Até então, devido ao uso de uma técnica de recortes e de composição mais lenta e elaborada, «dizia que não conseguia passar para a pintura as suas emoções. A partir dos anos 80 cria uma linguagem nova, mais imediata, que lhe permite esse confronto com as emoções, através de um elenco de personagens» que misturava pessoas, animais, monstros e figuras compósitas.

Esse bestiário tinha origem por vezes em leituras dos contos tradicionais, como a lenda da dama pé-de-cabra; outras vezes estava relacionado «com a figura do demónio»; e outras ainda inspirava-se em obras literárias de feição mais erudita, como O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges. A criação destas obras, continua Catarina Alfaro, «é um processo intelectual muito rápido, sem qualquer espécie de censura». Poderíamos quase dizer ‘freudiano’.

Animais domesticados fazem gestos feios

Na segunda sala encontramos uma série para a qual a pintora recorreu a personagens criadas pelo marido, o pintor britânico Victor Willing (1928-1988). «Ele tinha um teatrinho com três personagens, que eram o urso, o cão com uma só orelha e o macaco vermelho. A Paula Rego, que estava sem inspiração, viu esse teatrinho e disse ‘isto é genial’». Aos bonecos do marido, juntou outras personagens e pô-las a interagir como se tivessem vida própria. «Neste caso o macaco vermelho já está nas mãos do filho do urso e da mulher, já é vítima, enquanto ali era ele o agressor», descreve Catarina Alfaro. «Aqui é o macaco vermelho a vingar-se do cão e a mulher de certa maneira a ser cúmplice».

Mais adiante voltamos a encontrar este tipo de enredo, mas com uma intensificação da violência, numa pintura paradoxalmente intitulada Animais Domesticados. «A própria Paula Rego explica assim esta pintura: ‘Isto é a Morte com a espada na mão. A Morte está a matar este animal, mas enganou-se e cortou as suas próprias patas. Aqui temos o elefante que está a balançar [com a tromba] um cão, que por sua vez está a medir a febre».  Pelo meio há ainda «uma pantera cor de rosa e um bicho a fazer um gesto feio». De domesticados estes animais têm muito pouco…

Estas pinturas – que a própria autora sempre preferiu designar por ‘desenhos’ – são, como o teatrinho de Victor Willing, encenações. A paixão de Paula Rego pelas artes de palco vem da infância. Na exposição de Cascais pode ver-se uma seleção de obras inspiradas em óperas. «Ela adorava assistir às óperas no S. Carlos com o pai», refere Catarina Alfaro. Na tela que representa a Aïda de Verdi, por exemplo, «há referências ao Antigo Egipto, mas também à banda desenhada, aos comic books. Revela uma nova liberdade criativa, uma atenção a uma série de outras artes. Paula Rego nunca fez uma distinção entre artes maiores e artes menores». As ilustrações de Gustave Doré para a Divina Comédia, de Dante, ou para as Fábulas de La Fontaine, por exemplo, sempre foram para a artista uma fonte de fascínio e de inspiração. «Era o seu ilustrador favorito».

Na parede da quarta sala lê-se uma citação do pintor francês Jean Dubuffet, epígono da Arte Bruta: «Pessoalmente, acredito bastante nos valores da selvajaria. Refiro-me ao instinto, à paixão, à índole, à violência, à loucura».

A arte primitiva e intensa de Dubuffet pode ser considerada, em certa medida, uma antítese da de Gustave Doré, mas aparentemente Paula Rego soube conciliar as duas e integrá-las na sua linguagem.

O lugar onde a artista ‘se sente mais à vontade’

«O interesse de Paula Rego pelos artistas outsiders vem do final dos anos 50», comenta a coordenadora. «O nome que verdadeiramente a influenciou foi o Dubuffet, numa altura em que ela estava numa crise criativa e percebeu que este artista tinha tudo o que era necessário para que ela recuperasse a sua energia criativa e transpusesse a sua linguagem pessoal e a sua fantasia para as obras. Isso foi tão importante para ela que nos anos 80 vai realizar-lhe esta homenagem».  O exemplo de Dubuffet, continua Alfaro, serviu-lhe de «inspiração para regressar à infância, que no fundo foi sempre o lugar onde a Paula se sente mais à vontade, e regressa ao rabiscar, ao desenho imediato».

Talvez por isso, por causa desse desejo de regressar à infância, a pintora se tenha representado tantas vezes a si própria na figura de uma menina. Estamos na última sala, onde «tudo é completamente diferente do que a Paula alguma vez fez» nos anos anteriores.

E, mais uma vez, a novidade nasceu de uma crise criativa. «A certa altura a Paula disse a uma amiga que se sentia pouco inspirada e a amiga sugeriu: ‘Porque é que não fazes alguma coisa que tenha a ver contigo e com o Vic?’. Nessa altura o marido estava muito doente e ela achou que de algum modo podia tratar este tema não com o sentimentalismo típico de alguém que está a cuidar de uma pessoa, mas utilizando a figura do cão, sendo que o cão serve muito bem porque é dependente, mas ao mesmo tempo pode tornar-se feroz e virar-se contra o humano que o alimenta».

Os paralelos com as circunstâncias de vida da artista são às vezes evidentes: «Ali ela está a abrir-lhe a boca – provavelmente para introduzir um comprimido – e há uma figura que reza, o que torna a cena pesada – está a rezar porquê?», descreve a coordenadora.

A última pintura da exposição é porventura ainda mais perturbadora: exibe a mesma menina a desafiar o cão, levantando as saias à sua frente. O animal parece permanecer impávido, mas é precisamente essa postura que transmite à pintura a sua tensão. «O mistério interessa-me», diz Paula Rego, e, enquanto não soubermos como o cão vai reagir à provocação da menina, o enigma mantém-se.