Nada chega a ser tão sacrílego como ir beber às fontes, ao seu incontido vigor original, subtraí-las aos trabalhos de ocultação, sucessivos ajustes e refinamento da fé, que opera muitas vezes como uma força de erosão selectiva. Fossem outros os tempos e é certo que Frederico Lourenço seria visto como um heresiarca, alguém a ser olhado com as maiores suspeitas. E a sua tradução da Bíblia, ao demarcar-se por uma «clara linha não confessional», atendendo-se à «materialidade linguística do texto», vertido do grego antigo, talvez fosse preservada por uns poucos como uma «prodigiosa blasfémia», circulando na clandestinidade, as suas páginas separadas, lidas em segredo, decorados aquelas passagens mais saborosas, onde o grão de sal mais custa para desfazer-se na língua, carregado de visões fantásticas e cruéis. Porque há sempre um punhado de homens que, independentemente da fé, gostam de se embrenhar em atmosferas turvas, e reforçam as suas convicções no gozo sábio com que os dogmas podem ser lidos a uma luz menos restrita.
Ainda que estes sejam já outros tempos, a tradução que a Quetzal tem vindo a editar mostrou-nos que este é ainda um terreno sensível, e muitos pruridos ficaram à vistas. Tratando-se de um empreendimento monumental, a iniciativa partiu do próprio tradutor, que estava a avançar pelo Novo Testamento, quando pediu ao seu agente – a Booktailors – que colocasse a proposta de uma nova tradução da Bíblia, a partir do grego, no mercado. Houve algumas editoras que se mostraram interessadas, uma delas a Quetzal. Francisco José Viegas, que dirige esta chancela do grupo Porto Editora desde 2008, contou ao Sol que ao fim da primeira conversa que teve com Frederico Lourenço se tornou claro que tinham a mesma ideia para a edição, esta que viu chegar agora às livrarias o quarto volume (Os Livros Sapienciais), e que se encerrará em 2021, altura em que sairá o sexto e último.
«Foi um encontro de almas», diz Viegas. «Não nos interessava publicar uma Bíblia strictu sensu, mas sim uma Bíblia comentada, linguisticamente trabalhada por um especialista como o Frederico», esclarece o editor. E adianta: «era isso que ele queria fazer, seguindo o modelo do que foi feito em Cambridge, Harvard, Oxford… Uma edição da Bíblia grega, a ‘Septuaginta’».
Tomando nas mãos qualquer dos volumes já publicados, não é difícil perceber como esta edição terá representado a realização de um sonho tanto para o tradutor como para o editor. Com o miolo impresso a duas cores, uma paginação generosa, que dá folga à vista, deixa o texto respirar, e não encavalita as notas, mas lhes confere um «espantoso protagonismo», como notou José Tolentino Mendonça. São objectos que equilibram idealmente o sóbrio e o sumptuoso, com capa dura, o tradicional papel bíblia dispensado a favor de um com 100 gramas (de resto, um dos melhores no mercado, o que conferirá a estes livros uma maior durabilidade). Por outro lado, e dadas as elevadas tiragens, que variam entre 10 a 15 mil exemplares, o preço de capa de cada um dos volumes é bastante acessível se comparado com os preços hoje praticados pela maioria dos grandes editores.
Na entrevista que ocupa as páginas seguintes, Francisco José Viegas alarga-se noutros aspectos da génese e recepção desta edição, e vinca que publicar a Bíblia é o sonho de qualquer editor histórico, lembrando que, originalmente, a tipografia foi inventada para a imprimir. E a propósito da Bíblia de Gutenberg, um facto que não deixa, hoje, de causar-nos espanto é o ter-se calculado que cada cópia terá exigido as peles de 300 ovelhas. Mas decididamente mais relevante, como faz notar o editor, é saber que houve muitos casos neste país de pessoas que foram perseguidas e mortas por terem ousado ler a Bíblia. E Viegas recorda ainda que foi apenas nos anos 30 do século passado que o Vaticano finalmente assumiu que não via mal nenhum em que os fiéis pudessem ler as sagradas escrituras. Assim, e apesar das pontuais críticas ou reservas que mereceu esta edição, Frei Bento Domingues frisou: «A Bíblia pode ser lida de muitas maneiras. A pior de todas é não ser lida».
Frederico Lourenço tem defendido consistentemente a sua abordagem, lembrando que, «num mundo ideal todos nós leríamos o Antigo Testamento em hebraico e o Novo Testamento em grego – e assim resolvia-se da melhor forma a problemática levantada pela tradução da Bíblia». A propósito do 1.º volume, aquele que reúne os quatro evangelhos, Lourenço defendeu que «é preciso voltar a estudar e compreender o texto do Novo Testamento na sua língua original: o grego. O cristianismo do século XXI deve estar apto a aceitar que o rigor linguístico não é inimigo da teologia – muito menos da fé. Nem a Bíblia se torna menos santa por lermos nela o que realmente lá está escrito.»
Borges costumava citar a resposta de Bernard Shaw quando, certa vez, lhe perguntaram se acreditava que o Espírito Santo era realmente o autor da Bíblia, ao que ele terá respondido: «Não só a Bíblia, como todos os livros que vale a pena reler». Desta noção Borges aproveitava a ideia de que, para os crentes, o Espírito Santo é aquilo a que os antigos chamavam a Musa. E recorda a tradicional invocação com a qual Homero inicia a Ilíada: «Canta, ó Musa, a cólera de Aquiles»… Mas o argentino, a quem sempre surpreendeu mais o talento dos homens para fabricarem mitos, lembra que no grego a palavra Bíblia é plural, e designa esse heterogéneo conjunto dos sessenta e tal livros canónicos de Roma e Israel. Ou seja, a Bíblia é na realidade, uma biblioteca, lembra Borges. «Que ideia excepcional, a de reunir textos de diferentes autores e épocas distintas e atribuir-lhes um autor único, o Espírito!», desabafava num entrevista. «Não é maravilhoso? Que obras tão díspares como o Livro de Job, o Cântico dos Cânticos, o Eclesiastes, o Livro dos Reis, os Evangelhos e o Genesis: atribuí-los todos a um só autor invisível. Os judeus tiveram uma ideia estupenda. É como se alguém pretendesse juntar num só tomo, as obras de Emerson, Carlyle, Melville, Henry James, Chaucer e Shakespeare, e declarar que tudo aquilo provém de um mesmo autor». E Borges remata: «Foi uma ideia magnífica esta dos judeus: reduzir os seus livros, a sua biblioteca inteira, a um só livro chamado ‘Os Livros’, a Bíblia.
Agora que esta biblioteca chega ao leitor português numa tradução que, guindada por um extremo rigor filológico, privilegia a compreensão do texto grego, é-lhe possível reaver «o grande código» (William Blake), acompanhado de notas que dão relevo à materialidade histórico-linguística do texto. Deste modo, Frederico Lourenço dá prevalência ao carácter literal, e é nas arestas que o tradutor se recusou a limar, nas realidades inconvenientes e inconsistências, nas insuspeitadas profundezas onde o leitor já não quererá ser guiado senão pelos seus instintos que estes livros se mostram vivos. É nesses ecos mais esquivos ou zonas de sombra, e até naquilo que, por qualquer razão, perdeu o sentido, e deambula repetindo para si palavras desatadas, como um ser que perdeu as chaves do seu próprio labirinto, é no golpe desses rumores nascidos no interior de qualquer obra tão antiga quanto vasta, que se penetra uma beleza terrível. Ali chegam a sugerir-se hipóteses que soariam heréticas noutros séculos, desvios face aos dogmas, e é nessa deriva que reencontramos o vigor pulsante, a inquietação literária própria dos grandes textos, e que assinala a perenidade na respiração de uma obra capaz de um pacto entre o sagrado e o profano.
Como assinalou Tolentino Mendonça, o desconhecimento da Bíblia, não é «apenas uma carência do ponto de vista religioso, mas é uma forma de iliteracia cultural, pois significa perder de vista uma parte decisiva do horizonte onde historicamente nos inscrevemos. A Bíblia, que continua a ser religiosamente o vital repositório onde milhões de mulheres e homens buscam inspiração para a aventura da construção do sentido das suas próprias vidas, constitui uma espécie de chave indispensável à decifração do pensamento, imaginação e quotidiano, mesmo daqueles que nunca a leram, de tal modo ela está disseminada na cultura.»
De resto, em torno da Bíblia persistem uma longa série de equívocos, interpretações grosseiras que fizeram escola, tantas recontados, muitos pontos foram acrescentados aos seus episódios e parábolas. E como disse Chesterton, se muita gente assume que Eva comeu uma maçã, ou que Jonas foi engolido por uma baleia, a verdade é que na Bíblia não há referência a baleias nem a maçãs. «No primeiro caso apenas se refere um peixe, o que pode implicar toda uma variedade de monstros marinhos; e no segundo, fala-se na experiência essencial da fruição, ou degustação do fruto de uma árvore, o que é claramente mais genérico e mais místico (…) As coisas que hoje nos parecem mais ridículas foram as primeiras explicações racionais e não os primeiros contornos religiosos ou primitivos. Se essas imagens originais tivessem sido deixadas ao seu mistério natural ou sombria fruição ou tenebrosos monstros das profundezas, nao teria havido tanta discussão à sua volta (…) Portanto, é injusto virar o bico ao prego e tentar culpar a Bíblia por causa de todas essas lendas e anedotas e alusões jornalísticas, que são encontradas na Bíblia por pessoas que nunca a leram.»
Agustina Bessa-Luís terá escrito num dos seus romances – provalmente A Jóia de Família, segundo lembra João Bénard da Costa numa das suas crónicas (Introibo ad altare dei) –, que a Igreja Católica nunca saberá quantos crentes perdeu no momento em que decidiu deixar de cleebrar a missa em Latim. «Desde que, em 1970, Paulo VI aprovou a tradução, para as diferentes línguas do mundo, dos livros litúrgicos e, nomeadamente, do Ordinário da Missa, suprimindo o uso do latim, o que, para mim tinha o sentido dos mistérios, deixou de ter sentido», escreve Bénard da Costa, acrescentando: «Sentido em mistérios? A frase é aparentemente contraditória, mas tão contraditória como tudo o que se disser sobre mistérios. E a Missa é um mistério. E a liturgia é um mistério.»
Para aquele que tinha Frederico Lourenço como seu afilhado dileto, assistência na missa perceberia tanto em português como em abexim, limitando-se «a decorar um palavreado cujo sentido forçosamente lhe escapa». Se em latim o mesmo se passava, pelo menos, defende Bénard, «não havia a ilusão de compreensão e havia a certeza da tradição». Agora, graças à dedicação e empenho de Frederico Lourenço, os textos estão vertidos num português literário, talvez o sentido continue a escapar-nos mas, por uma vez, o caminho está desimpedido.