Um país de doutores

Um ‘senhor doutor’ qualquer não tem de ser mais do que o carpinteiro, o eletricista ou o técnico da máquina de lavar a roupa que vai a nossa casa

DEPOIS de o ministro do Ensino Superior, cauteloso, ter dito que talvez seja possível acabar com as propinas num prazo de dez anos, o Presidente da República, mais afoito, afirmou que o prazo até poderia ser menor. Para Marcelo, as propinas poderiam já ter acabado.

Julgo que o Presidente não pensou suficientemente no problema. Aliás, um dos riscos que Marcelo corre, ao falar muito, é que não amadurece as opiniões.

Antes de tudo, é preciso desmistificar a ideia da ‘gratuitidade’. Nada é grátis. Tudo custa dinheiro. A questão está em saber quem é que paga o serviço – se o utilizador, se a coletividade. Ora, deverá ser a coletividade a pagar o ensino universitário?

Ninguém duvida de que o ensino obrigatório seja pago por todos – visto ser universal. Mas com a universidade deverá acontecer o mesmo? Deverão ser todos a pagá-la – os que vão para lá e os que não vão? Acho que não.

OUTRA IDEIA implícita nesta polémica é que, para ter êxito na vida, é preciso ir para a universidade. Ora, isto é muito pouco saudável, pois menoriza e amesquinha as outras profissões. Portugal sempre teve uma reverência especial pelos ‘senhores doutores’. Mas os carpinteiros, os pedreiros, os agricultores serão menos que muitos senhores doutores que passam o dia sentados à secretária a preencher papelada sem nenhum benefício para a coletividade?

Um dos problemas do país, que já todos experimentámos, é a falta de profissionais em muitas áreas. 

Queremos contratar um pedreiro, um carpinteiro, um pintor, um eletricista, um canalizador – e é uma dificuldade. Ora, isto só se resolverá se dignificarmos estas profissões, se valorizarmos as escolas profissionais e o próprio estatuto social destes profissionais. Um ‘senhor doutor’ qualquer não tem de ser mais do que o carpinteiro, o eletricista ou o técnico da máquina de lavar a roupa que vai a nossa casa.

ESTOU MUITO à vontade neste problema pois pertenço a uma família de académicos e professores universitários, e eu próprio dei aulas durante mais de uma década numa universidade – por sinal, uma das melhores do país. Mas não tenho assim tanto respeito pela instituição universitária nem pelos ‘senhores doutores’ que lá se formam. Conheço muitos licenciados (e doutorados) que são perfeitos mentecaptos. Inversamente, já aprendi muito com gente sem instrução.

E, depois, o ‘academismo’ que se vive em algumas instituições universitárias tende a ser castrador da criatividade, formando burocratas que repetem ideias feitas.

POR TODAS estas razões, não vejo qualquer vantagem, pelo contrário, na gratuidade das propinas. A aposta deve ser outra. Na dignificação de todas as profissões. Na desmistificação dos canudos. Na valorização das escolas profissionais. Na melhoria do ensino nas universidades e no seu arejamento. 

Aliás, a experiência diz-me que as propinas nunca foram obstáculo a que muitos filhos de pessoas de classes mais baixas se formassem e chegassem ao topo. Muitas vezes não é uma questão de dinheiro mas de vontade.

O meu avô paterno era marçano e tirou um curso: fez a instrução primária num ano, os 7 anos do liceu em três, a universidade noutros tantos – e chegou a reitor de um conceituado liceu em Lisboa. 

Os verdadeiros interessados em estudar acabam por conseguir fazê-lo – e a dificuldade acaba por ser um desafio.

EM PORTUGAL, o elevador social funcionou. Basta pensar em Salazar, filho de um feitor, e em Marcello Caetano, filho de um funcionário da Alfândega. Curiosamente, em democracia é que o dito elevador parece estar a funcionar menos…

Se todos estudarem de graça, penso que as universidades se encherão de gente ociosa que lá vai mais para se divertir e passar o tempo do que para estudar.

E, já agora, quem trabalhará nos campos, e nas fábricas, e nas lojas, e nos restaurantes, e nos hotéis? Os imigrantes, transformados em novos escravos dos tempos modernos, como já acontece em muitos países da Europa? Será esta a boa solução?