Guerra na televisão

O obreiro da viragem foi o Big Brother, que inaugurou um tempo terrível: a era dos reality shows. Desde aí, o nível das televisões tem vindo sempre a baixar.

A guerra na televisão está ao rubro. Começou com a ascensão de Daniel Oliveira (o entrevistador e não o comentador barbudo) a diretor de programas da SIC. E ele mostrou-se corajoso. Podemos discordar das opções que fez, mas há que louvar a coragem. Levou a cabo uma limpeza geral na estação. Figuras com poder em Carnaxide, como Júlia Pinheiro ou Gabriela Sobral, foram afastadas ou marginalizadas. Mesmo Ricardo Costa, um ‘dinossauro’ do canal apesar da sua juventude, terá sido encostado à parede.
Só quem não conhece uma redação não imagina o que uma transformação destas representa. 

A SIC – QUE SE VAI MUDAR de Carnaxide para Paço de Arcos (para o complexo onde está o Expresso e onde funcionavam as revistas que deixaram de fazer parte do grupo, como a Visão e a Caras) – viveu uma autêntica revolução. 
Deixou de ser uma estação com algumas preocupações de qualidade – na linha dos projetos lançados pelo seu proprietário, Francisco Pinto Balsemão – para ser uma estação gerida obsessivamente pela lógica exclusiva das audiências. 

O PRIMEIRO SINAL e o mais visível desta revolução foi a contratação de Cristina Ferreira, que se tornou em Portugal um fenómeno televisivo. Conhecida como a ‘saloia da Malveira’, junta a uma imagem sexy uma capacidade histriónica que atrai as classes mais baixas. Ora, logo aí se viu que a aposta na mudança era muito alta, pois a contratação de Cristina custava milhões.
O fim da Quadratura do Círculo, recentemente anunciado, enquadra-se na mesma estratégia: ao reforço de tudo o que é popular, junta-se o desinvestimento naquilo que cheira a ‘intelectual’.
A lógica é conquistar audiências para fazer dinheiro – porque quem não faz dinheiro morre. Com o Expresso a cair em vendas e publicidade, o grupo Impresa, depois de vender as revistas, não tinha outra alternativa senão rentabilizar o mais possível aquilo que tem. É isso que a SIC está a tentar fazer. E, para isso, o nível tem de baixar. 

UM MOMENTO importante para a estação, pela negativa, foi aquele em que se viu ultrapassada pela TVI. O obreiro da viragem foi um programa que fez história, o Big Brother, e que inaugurou um tempo terrível: a era dos reality shows. 
Desde aí, o nível das televisões tem vindo sempre a baixar. Os jovens que se veem nesses programas parecem saídos dos subúrbios problemáticos das grandes cidades: têm os corpos todos tatuados, usam piercings nos sítios mais improváveis, utilizam uma linguagem imprópria e não mostram qualquer pudor no modo como se comportam. São programas que provocam uma sensação de repulsa. 
Com o Big Brother, a TVI baixou o nível da programação – mas essa baixa de nível levou-a à liderança absoluta das audiências em todos os dias e todos horários. Isso aconteceu em 2000, e recordo bem a preocupação que causou a Balsemão. Convidou-me para um almoço na Vela Latina só para falar do tema. Não sabia o que fazer. E havia pouco a fazer, de facto. 

MAIS RECENTEMENTE, o nível televisivo baixaria ainda mais com o aparecimento de um novo protagonista: a CMTV. Diga-se que esta não trouxe só coisas más: a sua grande agilidade permite-lhe estar em cima dos acontecimentos, transmitindo diretos como nunca se vira na televisão portuguesa. Mas é indiscutível que, pelo seu próprio conceito, tornou a programação ainda mais popular (e popularucha). E a TVI copiou-a, às vezes escandalosamente. Parecia uma espécie de competição pela conquista das camadas mais baixas da população.
A SIC manteve a sua linha de alguma sobriedade e alguma qualidade, mas a distância em relação à TVI aumentou. E, no cabo, a SIC Notícias foi ultrapassada pela CMTV. Aí, soaram em Carnaxide todas as campainhas. E tomou-se a decisão de mudar tudo. 

DANIEL OLIVEIRA é o obreiro desta nova fase. É um bom entrevistador e tem o sentido do que pode agradar à média dos telespetadores. É, portanto, o homem certo no lugar certo para a estratégia que foi traçada. 
Como disse atrás, sei o que custa fazer revoluções internas nos meios de comunicação, e a coragem que é necessária para isso. Mas atenção: há um risco. Quando se muda o ADN de uma estação de TV (ou de um jornal), quando se muda a identidade de um meio de comunicação, podem perder-se os fiéis e não se ganharem novos ‘clientes’.
Claro que nas televisões o risco é mitigado, pois é muito mais fácil mudar de canal do que de jornal. Basta carregar no botão – e não é preciso pagar nada. Mas a guerra promete!