10-0!!! Não foi desafio foi dez-a-fio

Não pertence ao Benfica o mais famoso 10-0 do futebol português. Foi, muito antes, a maior desgraça da seleção, frente à Inglaterra, em 1947

Aproximva-se o grande dia. 25 de maio de 1947! Com ponto de exclamação. Pela primeira vez o público português tinha a possibilidade de ver atuar os mestres britânicos, considerados os expoentes máximos de um ‘association’ do qual foram os inventores. Ah! II Portugal-Inglaterra da história!

Tavares da Silva, o seleccionador nacional, chama sete jogadores do Sporting – Azevedo, Cardoso, Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano; cinco do Belenenses – Capela, Vasco, Feliciano, Mariano Amaro e Serafim; três do Benfica – Francisco Ferreira, Moreira e Rogério; um do FC Porto – Araújo; e um da Académica – Bentes. 

Regressados aos confrontos internacionais pouco mais de um ano antes, por via da interrupção provocada pela II Guerra, os ingleses traziam consigo nomes que todo o Mundo se habituara a respeitar. Frank Swift, o guarda-redes do Manchester City, um gigante assustador com 1m90, capaz de longos lançamentos com as mãos, também pugilista de créditos firmados; George Hardwick, o capitão, oficial da Royal Air Force (RAF), que ficara ferido durante a Guerra pela explosão de uma bomba, defesa do Middlesbrough;   o sapateiro Finney, do Preston North End, um ponta-esquerda adaptado de recursos inesgotáveis; o perigosíssimo Tommy Lawton, avançado-centro do Chelsea, e, ‘last but surely not the least’, o lendário Stanley Matthews, ‘The Wizzard of the Dribble’, o ‘Feiticeiro do Drible’, o mais famoso extremo-direito do mundo, pelo qual o Blackpool acabara de pagar ao Stoke a incrível verba de 11.500 Libras Esterlinas (qualquer coisa como mil e duzentos contos de então) apesar dos seus 32 anos. 

O grande terramoto do Jamor

O público voltou a encher o Estádio Nacional, como não poderia deixar de ser. Saiu dobrado ao peso de dez golos. A vitória da Inglaterra não poderia ter sido mais clara, mais redonda, mais elucidativa: 10-0! 5-0 na primeira parte e mais 5-0 na segunda, à maneira dos jogos infantis de mudar aos cinco e acabar aos dez. A proverbial ironia lusitana diria nos dias seguintes que não se assistira no Jamor a um desafio mas sim a um dez-a-fio. 

Sob a arbitragem do francês De Lassale, as equipas formam do seguinte modo: Portugal – Azevedo; Cardoso cap. e Francisco Ferreira; Mariano Amaro, Feliciano e Moreira; Jesus Correia, Araújo,  Peyroteu, Travassos e Rogério; Inglaterra – Swift; Scott e Hardwick cap.; Wright, Franklin e Lowe; Matthews, Mortensen, Lawton, Mannion e Finney. 

Nas costas das suas camisolas brancas, cada britânico exibe o seu número a negro o que é algo de absolutamente novo em Portugal. 30 segundos após o apito inicial, Mannion, beneficiando de um passe rápido nascido no pontapé de saída, já corre solto pela direita do seu ataque. O centro é preciso e a cabeçada de Lawton indefensável. Os portugueses nem querem acreditar no que lhes sucede. Atónitos, mantêm-se estáticos e os primeiros minutos são infernais como seriam, depois, todos os outros. 

Não reagindo à dinâmica inglesa, veem Mortensen galgar vinte e cinco metros para concluir a sua cavalgada com um remate poderoso e colocado. Estão passados 7 minutos e a derrota já ganha contornos nítidos. Desiludido, o público vai seguindo com atenção a movimentação dos nossos adversários. Aos 11 minutos, é a vez de Lawton fazer uso do seu pontapé forte: 0-3. É  necessário algo para impedir o naufrágio doloroso da caravela portuguesa. Araújo e Travassos procuram remar contra a maré de uma superioridade contrária avassaladora. Por momentos o jogo estabiliza-se a meio-campo num equilíbrio precário e falso rapidamente desmentido por novo pontapé fulminante de Lawton que, desta vez, a trave de Azevedo devolveu. Era o anúncio do quarto golo, surgido aos 21 minutos num lance individual de Finney que estonteia Cardoso com dois dribles consecutivos antes de se isolar e bater o ‘keeper’ português. Tavares da Silva percebe que a excessiva veterania da defesa lusitana está condenada a ser triturada pela velocidade supersónica do ataque britânico. Faz sair Azevedo e entrar Capela e, pouco depois, substitui Cardoso por Vasco. Debalde. Finney traça a regra e esquadro a trajectória de uma bola que vai encontrar a cabeça infalível de Tommy Lawton. Os 5-0 são, agora, autênticos. O intervalo surge para os portugueses como o alívio do ‘gong’ para um pugilista encostado às cordas por um opositor cego de fúria. 

No espaço de dois minutos (59 e 60), os ingleses fazem dois golos. Primeiro é Stanley Matthews que se escapa a Francisco Ferreira e a Feliciano para oferecer, com um toque atrasado, o sexto golo a Mortensen; logo em seguida repete os dribles para oferecer, desta vez, o sétimo a Lawton. 

A frustração da goleada conduz os portugueses a lances de maior rispidez. Francisco Ferreira tem uma entrada a matar sobre Matthews, mas este é mais esperto e evita o contacto deixando, com o movimento, o benfiquista estendido no terreno, e avançando decidido para a grande-área onde oferece mais um golo a Mortensen cujo remate ainda faz a bola bater em Feliciano. O terramoto inglês está no auge da sua força destruidora. As triangulações são devastadoras, as desmarcações incontroláveis, os remates arrepiantes. 

Matthews parece estar à beira de enlouquecer Francisco Ferreira com o seu repertório infinito de fintas e simulações. O jogo caminha para o fim, Mortensen com nova cavalgada solitária faz o 9-0. O décimo golo nasce de uma combinação matemática entre Lawton e Matthews que este conclui com classe. A Inglaterra descansa. O público ainda incrédulo vai abandonando o estádio. Quem esteve no Jamor, nesse dia 25 de maio, jamais esquecerá…