Clássicos: Tripas e coração

Certamente um dos clássicos mais importantes da história do futebol português, o de maio de 1978 trouxe de novo o FC Porto para o topo

Fazer das tripas coração: o trocadilho tinha a sua graça e sem malícia. Afinal há 19 dolorosos anos que o FC Porto não comemorava um título de campeão nacional e, a três jornadas do fim, uma vitória caseira face ao Benfica, com o qual repartia o primeiro lugar, ombro a ombro, daria à equipa de José Maria Pedroto uma vantagem supinamente interessante e muito provavelmente decisiva.

Havia, no entanto, um problema para resolver. É que os encarnados, conduzidos por um inglês essencialmente prático chamado John Mortimore, teimavam em não saber o que era uma derrota. E davam-se ao luxo de, até aí, só terem sofrido 4 golos fora de casa. Ora, convenhamos que a tarefa exigia a sua astúcia. E astúcia era uma daquelas qualidades que se assacavam a Pedroto.

Numa época em que o país ainda vivia com os nervos à flor da pele, a criação de um tribunal cívico para julgar antigos elementos da PIDE e outros responsáveis pela violência praticada sob a capa do fascismo, uma espécie de corrente elétrica de alta tensão parecia atravessar a cidade do Porto e, sobretudo, o bairro das Antas e o seu estádio.

Faziam-se contas. E previsões. Depois do clássico, o FC Porto teria de se deslocar a Coimbra, para defrontar um Académico aflito, e receber o Braga; o Benfica iria jogar com o Feirense na Luz e deslocar-se-ia à Pousada de Saramagos para encontrar o Riopele (por castigo, o encontro acabaria por ser em Braga). E, fazendo-se estas contas, quase todos estavam certos que só a vitória da águia nas Antas lhes poderia dar um quarto título consecutivo visto que, repetindo-se o empate da primeira volta, o FC Porto tinha vantagem clara entre o deve e o haver dos golos marcados e sofridos, a segunda fórmula de desempate.

Procuravam-se afanosamente informações sobre os pormenores do grande clássico. Fidalgo estaria na baliza do Benfica. Bento lesionado. José Henrique no estertor da sua carreira. Humberto Coelho e António Oliveira surgiam como cabeças de cartaz da peleja. Previa-se a marcação individual de Eurico a Fernando Gomes. E uma vigilância feroz de Rodolfo a Toni. Falava-se nos dois mil contos oferecidos pela direção portista aos seus jogadores por cada ponto conquistado até final do campeonato. E dos mais de 70 mil espetadores esperados na enchente do estádio. E da enorme operação de segurança montada por dois pelotões de Polícia de Intervenção, por 130 agentes da Polícia de Segurança Pública, por 50 Guarda Republicanos a cavalo e mais um ror de cães-polícia. E… e… e…

O jogo de tudo

Chamaram-lhe Jogo do Ano, Jogo da Década, Jogo do Século. Os exageros eram permitidos. Nos cafés, nos barbeiros, nos escritórios, nos transportes públicos, o FC Porto-Benfica era tema de conversa e que se lixasse o problema do Sistema Nacional de Saúde (ontem como hoje?). Que os portistas, reforçados nos últimos anos com tudo do melhor que havia disponível no mercado nacional, tinham a obrigação de voltarem, finalmente, a entrar na lista dos campeões. Que o Benfica, embora sem o estilo entusiasmante de outras eras, estava fadado para marcar um domínio definitivo fronteiras dentro.

Sabemos, hoje, todos, como acabou. O empate 1-1, viria a permitir aos portistas redescobrirem a sua grandeza e foi o passo inicial para a sua tomada de poder nas décadas que se seguiram. Lamentar-se-ão muitos benfiquistas que perderam um campeonato sem consentirem uma única derrota e que, pelos regulamentos que atualmente vigoram, até teriam sido campeões já que os resultados entre ambos lhes seria vantajoso – 0-0 na Luz. Mas nem a história se reescreve nem temos paciência para revisionismos baratos que fedem a mofo.

Não foi um dos melhores clássicos de sempre mas valeu, seguramente pela emoção. Logo aos 3 minutos, Simões meteu desajeitadamente a bola na própria baliza e ficou a pairar no ar um certo nevoeiro próprio da irreversibilidade do Destino. Defendeu o Benfica com unhas e dentes essa vantagem até que Ademir, num remate de longe, a oito minutos do apito derradeiro de Manuel Vicente, impôs a lei da igualdade, festejada de forma tão intensa como se todos aqueles anos de frustrações e desalentos tivessem sido atirados como confetes do alto de uma janela virada para o sol.

Os jornalistas que estiveram nessa tarde mágica das Antas não tiveram dúvidas em sublinhar a justeza do resultado, ainda que de um lado se tivesse privilegiado a ofensiva e do outro o rigor na retaguarda. Já os intérpretes, deixaram-se levar pela emoção: «A vitória do Benfica, nestas circunstâncias, seria de lesa-futebol!», exclamava Pedroto. «A supremacia do FC Porto foi tão flagrante que só aos 42 minutos é que Fonseca foi obrigado a uma defesa. O Benfica apresentou-se com uma humildade impressionante na busca de qualquer sorte no resultado».

Fleumaticamente britânico, Mortimore respondia: «A minha equipa fez o seu papel a partir do momento em que se viu em vantagem no marcador. Não gostei do FC Porto e considero que ainda nada está perdido. Os dois jogos que faltam são difíceis e tudo pode acontecer». Enganou-se.

Já Toni e Oliveira, saíram-se com tiradas mais grossa. Dizia o n.º 10 portista: «É uma tristeza ver uma equipa como o Benfica jogar à defesa do princípio ao fim. Seria uma vergonha para o futebol se estes onze defesas fossem campeões nacionais!». E o rapaz de Mogofores, irónico: «Arbitragem impecável. Durante todo o segundo tempo muito bem auxiliada por Pedroto…».