A pintura do século de ouro no meio dos baldios

Há coisas muito curiosas, como diria um velho amigo meu. Diariamente, no regresso a casa, atravesso uma das zonas mais medonhas que tenho a pouca sorte de conhecer. São tantos os muros estragados, os terrenos baldios, as construções precárias e as ruas ao abandono que até ofendem a vista. É uma espécie de faroeste sem…

Felizmente, atravesso esta terra de ninguém durante a noite, pelo que muitos dos seus horrores permanecem ocultos na obscuridade.

E, no entanto, há um momento preciso desse percurso em que a estrada chega a uma bifurcação e me sinto invadido por uma sensação agradável, como se tivesse acabado de injetar uma pequena dose de uma droga antidepressiva. Das primeiras vezes, quase nem me apercebi, mas aos poucos fui tomando consciência desse bem-estar quase inexplicável. O que estaria na origem deste fenómeno?

Sentado ao volante, lentamente comecei a aperceber-me da imagem de um retângulo luminoso que ia ganhando contornos mais nítidos. Era a luz inconfundível de uma pintura holandesa do século XVII! Como foi ali parar?

Vou tentar explicar o melhor que posso. Virando à esquerda na tal bifurcação, a estrada vai desembocar numa zona urbanizada onde existe uma caixa multibanco. Foi aí que, há umas semanas, estacionei o carro, saí e efetuei o pagamento de uma encomenda. Como já terão imaginado, tratava-se de um livro: The Art of Describing, de Svetlana Alpers. Como ainda não o li, recorro às palavras avalizadas de George Steiner numa recensão para o Sunday Times: «A Professora Alpers avança uma tese e defende-a com vivacidade. Existe, diz ela, uma dicotomia fundamental entre a arte do Renascimento Italiano e a dos mestres holandeses. […] A arte italiana é essencialmente a expressão de uma cultura textual […]. O mundo da arte holandesa, por contraste, resulta de – e afirma – uma verdadeira ‘cultura visual’. Promove e estimula um sistema de valores em que o significado não é para ser ‘lido’ mas ‘visto’, em que o novo conhecimento é registado visualmente».

Eis, pois, a origem da tal imagem mental que, no meio da paisagem desoladora, anima os meus regressos a casa: o ecrã luminoso de uma caixa multibanco, a encomenda de um livro de história da arte e as maravilhosas pinturas dos mestres do chamado século de ouro holandês. Estava resolvido o mistério.

Enquanto matutava nisto, lembrei-me, porém, de que nessa mesma caixa multibanco também já fiz o pagamento de um outro livro que, ao contrário do de Svetlana Alpers, adquiri em segunda mão e se encontrava num estado deplorável (o que aliás me deixou bastante desiludido). Não seria mais natural, enquanto conduzo no meio de edifícios degradados e terrenos ao abandono, vir-me à memória, por associação, esse exemplar todo ‘escavacado’? _A verdade é que nem me lembro dele. Devo ser mesmo um optimista.