João Matos Fernandes. “Este Governo nasceu sem estado de graça”

João Pedro Matos Fernandes chegou ao Governo em 2015 com a pasta do Ambiente. No ano passado passou também a assumir a tutela da Transição Energética.  

João Matos Fernandes. “Este Governo nasceu sem estado de graça”

O ministro do Ambiente recebeu o SOL no seu gabinete da Rua do Século na última terça-feira. Falou sobre os novos passes, que acredita não terem impacto nas horas de ponta, da dificuldade que as pessoas e os gestores públicos têm em fugir ao confortável – a propósito da aposta nos carros elétricos – e criticou Assunção Cristas. Com o avolumar das notícias sobre famílias no Executivo, a entrevista acabou por ser atualizada ontem, por telefone. Matos Fernandes disse nada ter a acrescentar ao que «já foi dito por António Costa e por Marcelo Rebelo de Sousa».

É cedo para balanços, mas desde que tem a cargo a transição energética o que já conseguiu mudar? 

Em primeiro lugar, queria dizer que num país que apostou em ser neutro em carbono em 2050, aposta que é posterior ao próprio programa de Governo, havia de facto uma falta neste Ministério, porque a transição energética é determinante para o sucesso da política climática. E, por isso, foi com muita naturalidade que entendi esta rearrumação de competências. A primeira coisa que mudou foi o tom do discurso, havia um ambiente de grande crispação. E, independentemente das razões que levaram a essa crispação, estavam a inibir a realização de investimentos em Portugal e nós temos mais do que duplicar a nossa capacidade de produção de energia elétrica a partir de fontes renováveis, o que não estava a acontecer. Havia um ambiente de desconfiança que tinha de mudar e a primeira mudança foi uma mudança no discurso, uma mudança de valorização daqueles que são os promotores desses mesmos projetos.

Sobretudo em relação à EDP.

Com a EDP à cabeça pela dimensão que tem, numa importância mais fáctica do que qualquer outra coisa, e onde todas as empresas de menor dimensão agregadas em torno da Associação Portuguesa de Energias Renováveis (APREN) passaram também a ser muito valorizadas. Essa foi logo uma mudança grande. A segunda foi perceber que tem de haver garantias, um duplo conjunto de garantias, para que estes investimentos se façam, ambos em prol do interesse público. Uma das garantias resumi-la-ia a uma palavra: Geografia. Não faz sentido, mormente quando é no solar que a maior parte dos investimentos serão feitos, dar licenças em ‘no man’s land’ sem estarem associadas àquilo que é hoje a rede de transporte que já existe e à rede que finalmente está planeada de forma oficial, porque o Plano de Desenvolvimento e Investimento da Rede de Transporte de Eletricidade (PDIRT) foi aprovado. 

Uma mudança em relação ao que aconteceu até hoje, portanto.

Tivemos uma primeira geração de política de promoção de eletricidade a partir de fontes renováveis em que, por razões de imaturidade das tecnologias, foi preciso financiar investimentos. E, com isso, construíram-se aqueles que são os números que Portugal hoje tem – cerca de 57% da eletricidade provem de fontes renováveis. Conseguiu-se a concretização de um relevantíssimo cluster eólico, mormente em torno da Enercom, em Viana do Castelo, que é responsável por mais de dois mil postos de trabalho e de mais de 400 milhões de euros de exportações a cada ano. Depois entrou-se numa segunda fase que foi a de produzir eletricidade provinda de fontes renováveis a preços de mercado. Eu percebo perfeitamente que assim fosse, mas reconheço que os números não nos deixam muito confortáveis: foram muito poucos os projetos que objetivamente se concretizaram. Neste momento, e quando estamos a falar do solar isso é uma evidência, aquilo que faz sentido é produzir eletricidade abaixo do custo de mercado, sem estar aqui a discutir como é construído o preço de mercado – é um mercado marginalista, em que o último a entrar é quem fixa o preço. E vai ser o carvão ainda durante uns anos e depois vai ser o gás. 

É possível produzir hoje significativamente abaixo do custo de mercado?

Com o aumento da taxa de carbono que continuará a existir, com o aumento do valor do próprio CO2, através do crescimento do valor dos leilões (há um ano e meio a tonelada estava a 6,85 euros e este ano só houve um leilão abaixo de 20 euros), é inevitável que esse preço da eletricidade, como é fixado, aumente. Ora, estamos a falar de valores de 55/60 euros por megawatt/hora, quando hoje se produz a partir do solar por 35/40 megawatt/hora. O que é fundamental é fixarmos por leilão essas tarifas e com isso encontrarmos forma de esses projetos se desenvolverem porque se podem financiar – e como se financiam com menos riscos, também ficam mais baratos. E conseguir um sobreganho para os consumidores, pondo essa diferença de valor naquela que é a redução que queremos o mais acelerada possível do défice tarifário que ainda hoje temos.

Quanto às chamadas rendas excessivas, disse no Parlamento que há correções que podem resultar de processos em curso, embora tenha afirmado que o único caso que não dá por fechado é o do duplo apoio pago às renováveis. O que está realmente em aberto?

A primeira coisa é que todo o esforço que foi feito no sentido de reduzir as rendas associadas à produção de eletricidade, e não são só nas renováveis, – um esforço que vem deste Governo, embora não da minha lavra, – é todo para manter. Temos aqui uma dúvida, que no limite é uma dúvida jurídica, e que é o duplo apoio às renováveis, os 140 milhões de euros que houve ordem para serem devolvidos. Temos dúvidas sobre a aplicabilidade dessa regra, pela razão de isso já ter acontecido há muito tempo. O que está mesmo em causa? É haver tarifas subsidiadas para projetos que tiveram um outro apoio na sua concretização, com fundos comunitários. Isso são coisas já com muitos anos, por isso pedimos agora à Inspeção Geral de Finanças que apure melhor e admitimos também a possibilidade de pedir uma opinião à Procuradoria-Geral da República.

E se se concluir que houve duplo apoio?

Se houve um duplo apoio, obviamente ele terá de ser devolvido, a questão é: estaremos a tempo de o fazer? Não sabemos.

Disse que o tema das rendas excessivas poderia pôr em causa o investimento. Porquê?

Há uma coisa que eu não posso admitir, é que a comum das pessoas ache que energias renováveis e rendas excessivas são sinónimos e esse era o tom quando eu cheguei a ministro com esta pasta. Provocado por pessoas várias, até pela comunicação social. Não posso permitir que isso aconteça, porque nenhuma política se concretiza sem apoio popular, nós precisamos desesperadamente de chegar a 2030 com 80% da eletricidade consumida em Portugal provinda de energias renováveis – por razões do nosso compromisso climático e, já agora, pelo investimento que isto vai gerar. Não quero que ninguém pense que vai pagar mais por eletricidade porque ela provém de fontes renováveis. Isso não é verdade. E há um conjunto de coisas que nos compete fazer para que isso não seja verdade.

O quê?

Olhe, a primeira é acabar com os subsídios perversos ao financiamento da produção de eletricidade a partir do gás e sobretudo do carvão. Já começou há dois anos. Todas as pessoas parecem ficar muito incomodadas por haver apoio tarifário à produção de renováveis, que têm 20 anos, mas no carvão é desde que há carvão, no petróleo é desde que há petróleo. E sobre isso estranhamente ninguém fala. São 400 milhões de euros/ano, mas já foram mais – agora o carvão começou a pagar ISP (no ano passado 10%, este ano 25% e em três anos os 100%). Outro ponto importante é perceber que Portugal tem água, sol e vento bastantes para ser independente do ponto de vista energético. Eu sou o mais a favor de uma economia aberta e de uma sociedade aberta, mas não tenho a mais pequena dúvida de que temos de reduzir a nossa dependência com o exterior no que à energia diz respeito. Nós, hoje, que dependemos 75% do exterior relativamente à energia que consumimos, queremos chegar aos 65% em 2030, e a 17% em 2050, o que significa em barris de petróleo, deixarmos de importar os 70 milhões de barris que importámos em 2018, para em 2050 só importarmos 9 ou 10 milhões de barris. Isto é um ganho líquido a cada ano, para a economia – não para o Estado – de quatro mil milhões de euros.

No que toca ao encerramento das centrais a carvão, qual seria o cenário ideal?

Depende em primeiro lugar de uma questão que é a segurança de abastecimento. Essa segurança será a cada dia e a cada ano maior consoante novos projetos de renováveis venham aparecendo. E consoante a tecnologia avance no sentido de nós termos forma de armazenar essa mesma eletricidade uma vez produzida nos tempos em que ela é utilizada a mais do que aquilo que é a produção instantânea. Há uma coisa que eu sei, é que em 2030 não existirão, acabam até antes – a do Pego tem uma licença que pode acabar já no ano de 2021. Tudo o que pudermos fazer para antecipar esse ano de 2030 vamos fazer. Agora aquela proposta dos manifestantes mais jovens, que muito estimo, que pediam o encerramento agora não pode acontecer. Se nós fechássemos agora Sines, por exemplo, em boa parte dos dias provavelmente o sul do país ficaria em eletricidade. Seria dramático para a necessidade de apoio popular que temos para esta reforma, no sentido de todos se virarem contra nós.

António Mexia culpou as políticas do Governo pelos prejuízos de 18 milhões da EDP. Como viu essas declarações?

São certamente declarações concretas sobre aquilo que são as contas que a sua empresa apresentou, não me peça para comentar nenhuma afirmação do dr. António Mexia. 

Mas eram sobre as políticas do Governo.

O que eu sinto, e isso tem sido muito evidente até nas notícias que têm vindo a público sobre a estratégia da EDP, é que este discurso convergente da necessidade de que se cumpra o superior interesse público, que é o da descarbonização, e a disponibilidade que a EDP tem de, em condições de mercado e concorrendo com outros, vir a promover uma parte expressiva desses mesmos investimentos, é um sinal muito positivo que é dado ao mercado de capitais e aos investidores. 

Não receia que possa haver um desinvestimento da EDP em Portugal?

Estamos a fazer tudo para que isso não aconteça e as indicações que temos e que resultam aliás de um conjunto normal de reuniões com EDP, como com muitas outras empresas, é que os propósitos estão alinhados.

Foi noticiado, depois de um comentador o ter assegurado, que a barragem de Fridão não seria para avançar, o que obrigaria o Governo a pagar uma indemnização à EDP. É verdade que já há uma decisão?

Não tenho resposta para a sua pergunta. Até ao dia 18 de abril vai ser tomada uma decisão e, se quiser, o que força o dia 18 de abril, mais até do que as condições ambientais e as necessidades energéticas, é o respeito pelos municípios que têm uma parcela do seu território em suspenso desde há dez anos. Isso não pode continuar. Por isso, no dia 18 de abril vai ter de haver uma decisão. A decisão de não fazer a barragem é, obviamente, uma das hipóteses. Eu não falei com o comentador e portanto não sei qual pode ser a fonte de informação dele.

Mas a posição, seja ela qual for, já está ou não fechada?

Não, de facto, não está fechada. E, por isso, há aqui um processo negocial por trás e até dia 18 de abril vai haver uma decisão.

Mudando agora de assunto, como tem o seu Ministério acompanhado o caso da poluição provocada pela Siderurgia Nacional?

Temos acompanhado muito de perto e temos acompanhado também os esforços de qualificação ambiental que a própria siderurgia tem feito e sabemos que os fenómenos mais agudos de poluição, tendo muito provavelmente origem em siderurgia, não podem ser vistos isoladamente.

Como assim?

São também marcados por um conjunto de condições atmosféricas de uma atmosfera particularmente estável, que reduzia a capacidade de dispersão que existia nesses dias. Foram impostas regras pela Inspeção Geral do Ambiente para serem cumpridas em 60 dias e certamente serão cumpridas, o prazo ainda não chegou ao fim.

Mas há muitas pessoas que se dizem abandonadas há anos…

Não tenha a mais pequena dúvida de que o Ministério está muito atento. O Ministério do Ambiente tem um track record, pelo menos desde que aqui estamos, perfeitamente imaculado, olhe o que aconteceu com as licenças do Tejo, olhe o que aconteceu com a Celtejo, além de que pela primeira vez, e não me gabo do que vou dizer, foi detido um empresário por poluir o rio Vizela. Foi detido e presente em juízo. Não me gabo disto, mas antes de nós nunca tinha acontecido.

Esteve debaixo de fogo por dizer que era avisado avisar que os carros a diesel iam perder o seu valor. Se voltasse atrás, dizia o mesmo?

O que eu fiz foi um aviso à navegação, muito mais doce do que o aviso de uma senhora vice-presidente da Comissão Europeia, que anunciou mesmo a morte da tecnologia. E do que disse, por exemplo, o senhor presidente do automóvel clube dos Países Baixos, que em abril do ano passado escreveu uma carta aos seus associados por se ter sentido na obrigação de, preocupado com eles, lhes dizer que o valor da retoma dos carros a diesel ia necessariamente baixar, porque é uma tecnologia que começa a ser descontinuada. Ainda este fim de semana saiu um artigo sobre a Porsche, que deixou de fabricar carros a diesel e pode dizer-me: ‘Está a falar de um nicho de mercado’. É verdade, mas também é verdade que as inovações tecnológicas acontecem em primeiro lugar nessas empresas de carros de luxo. Eu não tenho nada contra coisíssima nenhuma, não estou aqui a verberar nenhum combustível. Acompanho, aliás, com muito interesse aquilo que são as melhorias tecnológicas do próprio diesel. Para sermos neutros em carbono em 2050 um terço da mobilidade de passageiros terrestre tem de ser em veículos elétricos ou a hidrogénio, uma tecnologia que irá crescer nesta década. 

O Estado tem de dar o exemplo.

O Estado está a dar um exemplo melhor do que este ao termos decidido, há duas semanas, que metade dos veículos que vierem a ser comprados para a Administração Pública serão elétricos e que os veículos dos membros do Governo, incluindo o do primeiro-ministro, terão de ser elétricos ou híbridos. É este o nosso caminho e pareceu-me avisado – porque há pessoas que certamente não tinham dado por ela – que tivessem esta mesma sensibilidade para o que pode vir a acontecer no futuro. Não estamos propriamente a falar de uma máquina analógica fotográfica que depois foi substituída por uma máquina digital, ou de um computador com disquetes que um dia deixou de as ter, estamos a falar daquele que é o segundo maior investimento das famílias, a seguir à habitação, por isso, continuo a achar que este aviso à navegação deve ser feito. E, em bom rigor, ninguém me contrariou. Aquilo que quem vende automóveis, e que obviamente vai vender automóveis elétricos, veio dizer mais ou menos é ‘isto não era para se dizer’. Mas ninguém conseguiu dizer que eu não tinha razão.

A Bosch está a testar um diesel renovável para dar continuidade a estes motores. Como vê isso?

São cantos do cisne (riso). Já respondi à sua questão.

Disse que o Estado vai dar o exemplo, mas ainda há pouco tempo o jornal i noticiou que o Turismo de Portugal ia comprar carros a diesel por, tendo justificado que era a opção mais racional, dados os problemas com o abastecimento…

Há situações onde o diesel não tem alternativa como os carros dos bombeiros e os jipes do ICNF, porque junto ao fogo é importante que não esteja gasolina. 

Mas esse não é o caso do Turismo de Portugal, quando disse que era a opção mais racional.

Essa foi uma resposta que acabou por ser contrariada depois pelo próprio Turismo de Portugal, que aliás é um grande parceiro da eletrificação. A rede de carregadores elétricos que já hoje existe no Algarve foi cofinanciada por eles. Essa compra de veículos era um processo que tinha um pedido de aquisição com mais de dois anos e outros processos como este vão surgir, até porque o despacho que saiu obriga a que todos os processos que estejam na central de compras do Estado e que ainda não tenham decisão voltem para trás para fundamentação, mas os que já tiveram decisão continuarão. 

É um processo de mudança fácil ou há forças de bloqueio?

Há sobretudo aqui alguma preguiça que é a de vamos fazer como sempre foi feito. A ideia de que as famílias, as pessoas, os gestores públicos, os empresários só tomam decisões racionais é uma ideia que não é verdadeira. Aquilo que em primeiro lugar nos provoca uma decisão é o conforto. Aliás, o prémio Nobel de há dois anos diz isso mesmo. 

Como por exemplo?

Na mobilidade vai haver uma disrupção, podemos chamar-lhe simbólica, mas a chegada das trotinetas e das bicicletas elétricas às cidades, nomeadamente Lisboa já é prova disso – li que em Paços de Ferreira e Freamunde também vai ser assim, já o é em Coimbra e no Porto. Eu não deixo de sorrir com os que dizem que se abandonam as trotinetas no passeio, eu já era careca há muitos anos e a cidade de Lisboa estava pejada de carros estacionados em cima do passeio. Obviamente que essas coisas têm de ser reguladas e vão ser reguladas, com o tempo vai haver uma adaptação.  

Essa disrupção é apenas ao nível dos meios ou também da consciência?

Quer ao nível dos modos de transporte, quer ao nível dos modelos de negócio de partilha vai haver grandes mudanças nos próximos anos, porque é insuportável a concentração de automóveis individuais e de tanto tubo de escape nas cidades portuguesas.

E qual é o ponto da situação atual da exploração do lítio?

Uma outra razão para me poder regozijar por Energia e Ambiente estarem sob a mesma tutela. Sim, vamos lançar uma concurso para o lítio. Dos 11 locais que estavam identificados pela Direção Geral de Energia e Geologia, dois caíram porque eram em zonas sensíveis do ponto de vista ambiental – toda a exploração de lítio tem uma avaliação de impacto ambiental e havia duas que sabíamos que a hipótese de chumbo era demasiado grande para no fundo andarmos quase que a enganar as pessoas permitindo que aí se fizesse prospeção. Nós queremos muito que o nosso concurso do lítio tenha uma componente industrial. Portugal não está disposto a ser furado à procura de lítio que depois é transportado para outros sítios sem haver aqui valor acrescentado. Não estamos mesmo. E por isso é que, não tendo a mais pequena dúvida da relevância que o lítio tem para promoção e consolidação das baterias que promovem a mobilidade elétrica, estamos muito satisfeitos por Portugal ter o potencial que tem, mas queremos associar um projeto industrial.

Pode dividir-se as preocupações com a neutralidade carbónica entre esquerda e direita?

Depende da escala a que estamos a falar. Se estivermos a falar da escala europeia, não faz qualquer sentido dividir a esquerda da direita – o Governo holandês é dos mais liberais que a Europa tem e é fortissimamente comprometido com combate às alterações climáticas. É verdade que à escala nacional é absolutamente incompreensível ouvir a líder do CDS dizer que pouco se faz no combate às alterações climáticas – aliás ela tem ali um problema seminal, não percebeu ainda que quando se fala em adaptação somos nós que nos temos de adaptar ao território e não o território a nós, é um problema de conceito básico. Mas ao mesmo tempo em que fala naquilo em que pensa que o Governo deveria ir mais além, também acha que o Governo deve baixar os impostos sobre os combustíveis, o que promove a mobilidade individual. Isto é obviamente um contrassenso, uma contradição em termos que não serei eu certamente a resolver.

Quanto aos novos passes, nem tudo será positivo, haverá desafios. Quais antecipa para já?

Os novos passes são de facto uma forma extremamente relevante de fazer perceber ao comum da sociedade portuguesa o quão importante é o combate às alterações climáticas e que esse combate pode ter ganhos sociais muito importantes. Obviamente que estamos a devolver dinheiro às famílias e que, como já foi abundantemente falado, é uma parcela significativa, mas a razão mãe de tudo isto é que as pessoas passem a utilizar mais o transporte coletivo e que não existam casos em que fica mais barato andar de carro. Ainda existe erradamente a ideia de que a sustentabilidade é importante, mas faz com que as coisas fiquem um bocadinho mais caras. Ora aí está um exemplo em que a sustentabilidade é importante e faz com que as famílias tenham um grande alívio naquilo que são as suas faturas mensais com as deslocações casa trabalho ou casa escola. 

E não faltarão transportes nas horas de ponta? 

Se quer a minha opinião, não há de ser nas horas de ponta que se vai sentir uma grande mudança nos tempos mais próximos, essas pessoas já utilizam os transportes coletivos, vai ser sobretudo ao longo do dia, com a mobilidade que as pessoas ganham e a ubiquidade com que vão poder deslocar-se. É isso que vai fazer com que os transportes tenham mais passageiros.

Acha que, correndo bem essa estratégia, haverá autocarros, metros e comboios para toda a gente? 

Nós estamos muito mais bem preparados do que estávamos, claramente, há um ano. Olhe, dou-lhe o exemplo do metro de Lisboa, onde havia 30 unidades triplas paradas e neste momento há duas. Dou-lhe o exemplo da Transtejo e da Soflusa, onde o esforço que foi feito da manutenção dos barcos foi muito evidente. Temos, de facto, uma manta curta. No caso da Transtejo são poucos os navios de sobra e são uma frota muito velha e, por muito cuidado que exista na manutenção, todo o navio que tem 40 anos, avaria inopinadamente. Estamos muito mais bem preparados do que estávamos, mas este é mesmo um problema bom, não é? É muito melhor gerir a abundância do que gerir a escassez e, por isso, cá estaremos para dar resposta. Com a certeza de que falando dos operadores públicos de transporte, no que à TST, CP e à Carris diz respeito com a sua gestão pelas autarquias, eles têm hoje uma maior capacidade de oferta e uma muito maior agilidade na resposta à procura. E há um conjunto de investimentos – como a aquisição de 715 autocarros de elevada performance ambiental -, que começam já a dar resultados. Olhe, em Lisboa e Porto isso é muito evidente, em Coimbra estão para chegar, em Aveiro já chegaram, em Braga já chegaram. E quando esta entrevista for publicada, também no Barreiro já terão chegado os primeiros.

Quer pôr um ponto final quanto à paternidade da ideia?

Então é assim, a ideia foi-nos transmitida ao Governo pelas duas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto numa conferência de março do ano passado. Portanto, se quiser pôr aí o problema da paternidade, ela está endereçada. Mas, de facto, quem educou o filho, foi mesmo neste ministério que o fizemos, foi aqui que estruturámos todo o PART. E, obviamente, com um grande apoio de todo o Governo que alocou, fazendo uma opção, 104 milhões de euros do Orçamento do Estado para que o PART este ano, e a partir de 1 de abril, fosse materializado. 

Focando agora nas secas que já começam a ser faladas, o que é que o Ministério do Ambiente tem feito nesta matéria? O que se poder fazer curto prazo? 

Só há uma solução a curto prazo: poupar água. E só há uma solução a longo prazo, insisto. Mesmo nos anos em que chove, temos de continuar a poupar água. Portugal está num hotspot das alterações climáticas, que é a bacia mediterrânica – que é uma região onde é mais a quantidade de água que consumimos do que aquela que chove. E, portanto, é mesmo preciso poupar água. Em tempo de pouco dinheiro não se mandam comprar cofres. Portanto, em tempo de poupar água não se multiplicam barragens. E, de facto, a água vai ser cada vez menos e, por isso, temos de fazer um uso cada vez mais eficiente dela. E isso envolve sobretudo o maior, naturalmente, consumidor de água deste país que é o setor agrícola. Nós temos uma infraestrutura de abastecimento de água muito robusta – não cobre 100% do território, mas quase. Dentro de dois anos, de acordo com aquilo que está programado, o problema mais grave que é na bacia do Sado estará muito mitigado por aquilo que é a possibilidade de transferências e com as ligações que estão neste momento em execução a partir da bacia do Guadiana, mais concretamente no Alqueva. 

E não se pode fazer mais nada além de poupar água?

Além da poupança podemos introduzir o conceito de economia circular na gestão da água – começarmos a reutilizar o esgoto tratado das nossas ETAR (Estações de Tratamento de Águas Residuais). Nós temos, nas 50 mais importantes ETAR do país, esgoto tratado que é água. É óbvio que não é água potável, não é água que se pode beber, mas é água que pode, sem nenhum aditivo de tratamento, servir para lavar ruas, regar jardins, regar pomares – não digo regar os legumes que vamos comer, mas regar as árvores que produzem a fruta. Há um conjunto vasto de utilizações secundárias que podem ser feitas a partir daí e vamos ter mesmo de utilizar e reutilizar essa água. Por isso é que, até 2025, temos esta meta de utilizar 10% do esgoto tratado dessas 50 maiores ETAR. E até 2030, 20%. E já temos algumas experiências-piloto muito felizes. Olhe, no ano passado, o caso do Selo Verde, que é um programa de apoio aos festivais rock e à melhoria da performance ambiental dos festivais e, sobretudo, dos festivaleiros, que são mais de um milhão em Portugal. E, portanto, é um projeto de educação ambiental relevantíssimo. Os espaços verdes do Rock in Rio foram todos regados com esgoto tratado das ETAR de Lisboa. 

E quanto às perdas da rede não é possível fazer nada?

Essas perdas são preocupantes, sendo que é preciso perceber-se o seguinte: estamos muito longe de poder dizer que as perdas de águas são perdas físicas. Algumas são, certamente, condutas velhas, que é preciso substituir e, neste momento, há um aviso do Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos para investir 100 milhões de euros para substituição dessas condutas. Mas há sobretudo muitos problemas de gestão aqui – problemas de computadores velhos, problemas de ausência de capacidade para gerir pressões da rede, problemas de faturação. Ainda há autarquias neste país que, por serem elas quem distribui, não cobram água a si próprias, e isso conta como uma perda, porque é água não faturada. Isso tem de decididamente mudar e está a mudar. E o facto de 55 municípios terem aceite o nosso desafio para se agregarem – outros aí virão – na gestão das redes é, de facto, um grande incentivo para, sem aumentar o preço da água, podermos ter uma gestão muito mais eficiente, com muito mais tecnologia aplicada à gestão das redes, à faturação, aos parques de contadores, coexistências de piquetes para resolver os problemas das fugas que existem e que muitas das vezes não são detetadas, já agora com técnicos especializados que possam ir compondo a rede ao longo do tempo sem necessariamente estar a fazer intervenções de milhões. 

O Tribunal Central Administrativo do Sul revogou a decisão de suspensão do furo de Aljezur. O que é que vai acontecer agora? 

Não vai acontecer nada. O promotor desistiu, não vai haver furo em Aljezur. Este furo não vai fazer-se, acabou. 

Já falou da greve dos jovens a propósito das centrais a carvão. Como homem, não como ministro, como é que viu esta mobilização? 

Respondo também como ministro: acho que esta é a causa pela qual todos nos devemos bater, não são só os mais novos. Sou de facto de uma geração que a única greve que fez foi contra o aumento do preço das cantinas. Acho que há aqui uma causa muito mais relevante do que protestar contra o aumento das cantinas. 

Mas serem os mais novos tem um significado especial?

Estas pessoas são os seus atuais e os seus futuros leitores, os futuros votantes, os futuros clientes das empresas e, portanto, não deixarão de empurrar toda a sociedade e, sobretudo, o setor produtivo e, obviamente também quem toma decisões ao nível político, para decisões mais consentâneas com a necessidade de reduzir o aquecimento global. Mas há o conforto de saber que há menos de um mês Portugal ganhou, aliás, está atrás de si, um prémio na UNESCO de campeão das renováveis. Falo no primeiro país no mundo que assumiu ser neutro em carbono em 2050 e, se outros já fizeram o mesmo statement político, ainda não fizeram uma coisa que nós já temos quase concluída, que é o roteiro de neutralidade carbónica, que é absolutamente fundamental para ganhar apoio popular, para fazer a transição com tempo e para fazer a transição o mais justa possível. 

Sente vontade de continuar a trabalhar com estes jovens, de mostrar que as portas do Ministério estão abertas a eles?  

Acho que é fundamental fazê-lo. Desde que este Governo é Governo que aplicou nos últimos dois anos quatro milhões e meio de euros em projetos de educação ambiental. Portanto, é até importante que, se os jovens quiserem estruturar um movimento menos inorgânico e, portanto, mais formal, o façam em torno da própria estratégia nacional de educação ambiental – que não existia e que agora existe. E, com certeza que não deixaremos nunca de auscultar as preocupações sociais que existem e esta é a mais relevante das preocupações. Há uma coisa que eu nunca farei: é levar a minha filha à manifestação, aparecer para me deixar fotografar. Tenho o meu pudor e nunca farei. A luta é deles. Ou melhor, a luta também é minha, mas faço-a de outras formas.

Qual foi a luta mais difícil desde que chegou a este Ministério? 

Houve alguns momentos em que tive dificuldade em entender as outras partes. Dou-lhe um exemplo, os promotores de gado bovino, ao não quererem perceber que a dieta está a mudar e que, de facto, as vacas são responsáveis por 80% daquilo que é a poluição provocada na agricultura. A luta dos senhores taxistas no sentido de defenderem um privilégio que tinham. E aí, mais grave até deste ponto de vista, foi a recusa formal e frontal de um projeto em que tínhamos dez milhões de euros que iríamos buscar ao plano Juncker para modernizar o setor do táxi. Como é que alguém pode desprezar uma vontade de apoio à modernização do seu próprio setor?  Mas enfim, a sociedade também se organiza com interesses corporativos, onde às vezes valorizam muito a palavra ‘autoridade’ e desvalorizam muito a palavra ‘alteridade’, isto é, a capacidade que temos de nos pôr no papel do outro. 

No que toca à Uber, acha que foi um sucesso o que se alcançou? 

Foi, de facto, um sucesso para o ecossistema da mobilidade urbana. Era absolutamente necessário regulamentar a Uber, não podia ser uma atividade pária e a decorrer só à margem da lei. Neste momento, os direitos dos trabalhadores estão garantidos como qualquer outra atividade. E o dos consumidores também. 

Abordam-no nos táxis?

Ainda ontem, chegado do Porto à Gare do Oriente, apanhei um táxi para casa, com quem fui a discutir animadamente e que tentou muito que eu tudo fizesse para a modernização do setor do táxi. E eu disse: ‘olhe, eu tudo fiz, mas não deixe de convencer os seus dirigentes associativos com esse mesmo objetivo’. 

Acha que também aí o discurso foi relevante? 

Costuma dizer-se que nos tempos de incerteza, os governantes devem agir com muita cautela. Ora, na história moderna, já lá vão mais de 300 anos, encontrem-me um tempo que não foi de incerteza ou de inquietude. Eu não conheço um. E, por isso, acho que a responsabilidade é fundamental nas decisões, mas é mesmo preciso ter ambição. E aqui saímos do nosso espaço de conforto para sermos o mais ambiciosos possível. Houve aqui um enorme apoio popular a esta decisão, que é claramente uma decisão que não é contra ninguém, é a favor dos cidadãos. Eu volto, se quiser, ao caso do diesel. Sim, eu estou preocupado com quem vende carros, mas estou muito mais preocupada com quem os vai comprar, que é um número muito maior. 

Continua a ir aos fins de semana ao Porto? 

Não digo todos, mas quase, quase todos. 

Como é que é ser um homem do Porto em Lisboa num Governo que tem tido desde o início como bandeira a descentralização? 

Para mim ser do Porto é uma questão estritamente pessoal. Porto é casa. Eu sou do Porto, ponto. Mas não me sinto nada diferente de qualquer pessoa pelo facto de vir do Porto. Aliás, eu sou filho de um juiz e, portanto, vivi em inúmeros sítios. Só fui viver para o Porto quando fui para a faculdade. Mas acho que é fundamental o processo de descentralização que este Governo tem, onde este ministério tem dado muitas provas. Olhe, na área metropolitana do Porto com a STCP, mas não menos na área metropolitana de Lisboa com a Carris, com aquilo que foi a experiência de cogestão do Parque do Tejo Internacional com as autarquias. Portanto, são inúmeros os processos de descentralização de competências que me parecem fundamentais. O eu ser do Porto não me atribui nenhum olhar especial relativamente a esta medida. 

Não lhe é mais cara a descentralização? 

Não creio que seja. É-me muito cara, mas tenho muitos colegas meus do Governo que não são do Porto para quem estas medidas e este pacote de medidas é igualmente caro, sobretudo o meu colega da Administração Interna.

As pessoas que o reconhecem na rua têm noção do que faz?

Em parte, sim. As pessoas são muito simpáticas comigo na rua. Nunca tive nenhum momento aborrecido, eu que ando sozinho por todo o lado. É também verdade que muitas das pessoas têm uma imagem de nós muito difusa, trocam-nos os nomes, trocam-nos os cargos, mas de uma maneira geral isso acontece cada vez menos. Tenho a clara certeza de que o comum dos cidadãos portugueses reconhece mérito a este Governo por aquilo que fizemos em matérias que têm muito a ver com a vida deles e onde a reposição dos rendimentos tem de facto muito significado. Agora a baixa em todo o país do valor dos transportes coletivos vai ter muito significado também. 

Quando diz que as pessoas, no geral, têm noção do que este Governo tem feito, acha que o estado de graça de mantém inalterado?

No que à expressão estado de graça diz respeito, eu diria que este Governo nasceu completamente sem estado de graça. Imagino que se fizeram apostas sobre quanto tempo é que ia durar este apoio parlamentar, que vai muito além do PS. Este Governo, claramente, teve, mais do que qualquer outro, de provar que era mesmo possível construir uma alternativa diferente e construir uma forma de fazer política diferente, de manter, aliás, ir muito além do rigor das contas públicas e pôr a economia a crescer, fazendo com que todos fossem tributários desse mesmo crescimento. Eu não sinto nada que este Governo tenha nascido com um estado de graça, muito antes pelo contrário, nasceu de outra forma. E também não chamaria estado de graça àquilo que tem sido o sucesso do próprio Governo, que tem tido de facto muito sucesso no cumprimento de todas as suas obrigações internacionais. E ao ter ganho uma voz na Europa que não tinha. Não é o Governo que a tem, é Portugal que a tem. 

Imagina-se no próximo Executivo? 

Todos os meus projetos são profissionais. Nunca tinha estado em nenhuma função política, já tendo estado em cargos de nomeação por políticos – fui presidente do porto de Leixões e fui presidente das Águas do Porto -, mas para mim são sempre desafios profissionais. Preparei-me para o cumprir durante quatro anos, que era o tempo de uma legislatura, mesmo sabendo que, num cargo como este, há sempre sobressaltos e vontades de mudança que o podem, com muita naturalidade, fazer interromper. Isso não aconteceu e, portanto, preparo-me, se tudo correr com regularidade, para concluir esta mesma legislatura no contexto de uma equipa extraordinária que é a deste Governo liderado por António Costa. Há uma coisa que eu sei: há muitas coisas para fazer e eu acredito que sou capaz de fazer muitas coisas diferentes destas que faço aqui.  

Já chegou a ter a sua mulher neste ministério. Como vê todas as ligações familiares neste Executivo?

Nada tenho a acrescentar àquilo que foi dito pelo senhor primeiro-ministro e pelo senhor Presidente da República.