Quando o vento volta a nada nos dizer

Na Trova do Vento que Passa, Manuel Alegre  escreve: «Pergunto ao vento que passa/notícias do meu país/e o vento cala a desgraça/o vento nada me diz».  N’ O Canto e as Armas – obra prima de Alegre de 1967 -, o autor descrevia o Portugal amordaçado (para usar as palavras que dariam título ao livro…

Na Trova do Vento que Passa, Manuel Alegre  escreve: «Pergunto ao vento que passa/notícias do meu país/e o vento cala a desgraça/o vento nada me diz». 

N’ O Canto e as Armas – obra prima de Alegre de 1967 -, o autor descrevia o Portugal amordaçado (para usar as palavras que dariam título ao livro da autoria de Mário Soares lançado em 1972) e aquela ‘trova’ terminava com um grito de resistência: «Mesmo na noite mais triste/em tempo de servidão/há sempre alguém que resiste/há sempre alguém que diz não».
Adriano Correia de Oliveira cantou-o como ninguém.
E ninguém o disse como o diz o próprio Alegre.

Outros tempos. Naqueles tempos em que imperava a censura, o analfabetismo, a iliteracia, a desinformação
Não foi assim há tanto tempo.
Ainda que já tenham passado décadas.
Mudou o regime, veio a democracia e a liberdade de expressão e o primado do direito à informação.
E da revolução industrial passámos à revolução tecnológica, digital, da inteligência artificial.
A internet democratizou e massificou a informação.
Ao ponto de torná-la gratuita ou de sedimentar a perceção de gratuitidade.
Ora, porque o homem não dá valor ao que tem com abundância e é gratuito, mas apenas ao que não tem porque é raro ou pouco acessível, a informação passou a atravessar uma crise histórica.
Como tudo o que é gratuito, perdeu investimento. E, perdendo investimento, perde qualidade.

Como a democracia. Porque a qualidade da democracia está diretamente relacionada com a qualidade da informação, da formação, da educação, da cultura cívica e política.
E aquela não se faz de desinformação nem de informação sem qualidade, sem investimento.
Da mediania à mediocridade vai um pequeno passo.
Depois, o abismo.
E aí já não há recuo.
Ora, no abismo em que caímos, a informação volta a perder-se no vento que passa, como na trova de Alegre.
A notícia morre quase no segundo seguinte, consumida pela notícia seguinte, por um outro facto quantas vezes menos relevante, ou até absolutamente irrelevante, mas com mais audiência, com mais likes ou com mais seguidores. Ou, simplesmente, com eco apenas e só propositadamente ampliado para abafar outros factos, outras notícias, porventura mais incómodas. É uma outra e nova ditadura.

Basta criar um bruá. Outro bruá. Alimentar um novo facto para desvalorizar o que se pretende abafar.
Ou investir no silenciamento e em calar a desgraça.
Ou, em última análise, tão só e apenas deixar o vento passar.
Se não for um furacão, um tornado ou um ciclone, a que ninguém pode passar indiferente, basta ser paciente e perseverante e saber esperar pela acalmia, que acaba por chegar, mais tarde ou mais cedo – que é cada vez mais cedo nos tempos que correm, porque correm a uma velocidade estonteante.
Voltando aos clássicos, desta vez do cinema, é caso para dizer que e tudo o vento leva ou, como tudo é hoje tão rápido… já levou.

Em Lisboa, em Picoas, na Fontes Pereira de Melo, está concluída uma torre que quase concorre com o vizinho Sheraton, que, ainda assim, resiste como o edifício mais alto da capital.
O seu primitivo proprietário não foi autorizado a edificar nem metade dos andares – a Câmara de Lisboa chumbou-lhe sempre os projetos.
Acabou por ceder e entregar o terreno, perdendo milhões.
E a verdade é que, poucos anos depois, está feita e concluída obra com mais do dobro dos andares tanto à superfície como  no subsolo.
Foi tudo noticiado, mas ninguém quis saber.
E a torre fez-se e está feita.
Facto consumado.

Como aquela torre, há muitos outros projetos e casos como este em todo o país, passados e futuros, a começar por Lisboa e até pela própria Fontes Pereira de Melo. É só dar mais tempo ao tempo…
Porque, mesmo quando denunciados, acabam por ser consumados.
E quem diz obras como esta diz tantos outros escândalos, que se perdem nos ventos que passam.
Mesmo havendo ainda quem resista.
Mesmo havendo ainda quem diga não.
Ainda…