‘O exército europeu é só uma metáfora’

A propósito do 70.º aniversário da NATO, João Gomes Cravinho fala do futuro da organização, que diz ter sido fundamental para a modernização das Forças Armadas. A guerra cibernética é uma preocupação.

A NATO faz 70 anos. Entre a integração militar europeia e o Brexit, passando pelo surgimento de novas frentes de batalha online, o ministro da Defesa Nacional traça ao SOL um esboço do futuro da organização, numa entrevista concedida por escrito esta semana. João Gomes Cravinho fala ainda do reforço previsto para as Forças Armadas e no investimento na defesa cibernética do país.

Neste momento histórico, quais considera os maiores desafios de segurança enfrentados pela NATO a nível geoestratégico?

A preservação da integridade territorial dos Aliados e a autonomia dos seus sistemas políticos. Todas as ameaças à soberania constituem desafios geoestratégicos para os Aliados NATO.

Num contexto pós-Guerra Fria, qual é o futuro da Aliança Atlântica? Faz sentido uma continuação da NATO?

Nos últimos 30 anos, desde o final da Guerra Fria, a NATO tem demonstrado a sua capacidade de adaptação às contínuas mudanças no ambiente geoestratégico. Num contexto de grande incerteza quanto ao futuro, a Aliança representa, para todos os Aliados, a garantia mais forte de segurança e continua a ser a âncora de segurança coletiva. Volvidos 70 anos, podemos afirmar que a participação em missões NATO ajudou a reinventar o papel das Forças Armadas portuguesas e a nossa presença ativa na organização foi e tem sido um agente transformador decisivo para a modernização da Defesa Nacional. As missões NATO ajudaram a incubar meios, doutrina e prioridades, pelo que seria incompreensível falar de Forças Armadas portuguesas democráticas e modernas sem falar da NATO. O contributo nacional para a Aliança Atlântica, de que Portugal é fundador, não apenas em meios, mas também em empenhamentos, tem sido valioso e a importância que a NATO tem para o desenvolvimento e atualização das nossas capacidades militares inestimável.

A NATO está preparada para um futuro de guerra cibernética? Continua a haver fragilidades nos países membros, incluindo Portugal?

Uma das conclusões da Cimeira da NATO em Varsóvia em 2016 foi o reconhecimento pelos aliados de um quarto domínio operacional. Para além de terra, mar e ar, os aliados reconheceram o ciberespaço. Este domínio tem sido testado nos diversos exercícios anuais da organização. De notar o esforço que tem vindo a ser feito a nível nacional: na proposta de Lei de Programação Militar está previsto um reforço de 40M€ no Centro de Ciberdefesa. Só este ano vamos quadruplicar o número de efetivos que trabalham nesta unidade do Estado-Maior-General das Forças Armadas.

Teme-se que os conflitos geopolíticos passem a incluir campanhas de desinformação massiva online. A NATO atua nessa frente?

A desinformação não é uma característica nova. Nesta matéria, como noutras componentes de conflitos, é natural que a evolução tecnológica produza novos desafios, e temos visto que há esforços organizados para semear desconfiança através da desinformação. Um dos Centros de Excelência da NATO é justamente dedicado à Comunicação Estratégica, onde é desenvolvida investigação e doutrina sobre desinformação, notícias falsas, campanhas nas redes sociais, e tanto a NATO como a UE têm vindo a acompanhar de perto esta matéria.

Como vê as propostas de maior integração europeia a nível da cooperação militar? Por exemplo, as propostas de criação de um exército europeu, como tem sugerido Emanuel Macron?

Nos últimos anos temos assistido a um aprofundamento sem precedentes da cooperação no plano da segurança e defesa na UE, através da Cooperação Estruturada Permanente e do projeto de um Fundo Europeu de Defesa. Quanto à expressão ‘Exército Europeu’, ela tem sido usada como uma metáfora por alguns países, para a intensificação da cultura operacional conjunta através da aproximação, em termos doutrinais, operacionais e de planeamento. Portugal, tal como a vasta maioria dos países europeus, é contra a criação de Forças Armadas Europeias entendido no seu sentido literal. Temos bem presente a resolução da Assembleia da República que rejeita a criação de um ‘Exército Europeu’. As Forças Armadas continuarão a estar sob decisão soberana no nosso país, bem como nos outros. Temos tudo a ganhar em aprofundar a colaboração e o trabalho entre a União Europeia e a NATO no que diz respeito aos recursos disponíveis numa ótica de complementaridade, para que cada organização possa tirar o melhor proveito das suas vocações e valências.

Uma maior integração militar europeia arrisca tornar a NATO redundante? Ou a presença dos aliados não europeus continua a ser essencial para a Defesa portuguesa?

Longe da redundância, uma Europa mais forte significa uma NATO mais forte. Num mundo imprevisível como é o atual, todos os países aliados e amigos são necessários. O grande desafio é saber como promover e operar as necessárias sinergias, e Portugal participa de forma ativa e construtiva nessa discussão.

O Brexit coloca em causa a cooperação e integração militar europeia?

Compete-nos evitar que o Brexit tenha consequências negativas para a segurança e defesa europeia, nomeadamente através do desenvolvimento de uma relação de grande proximidade com o Reino Unido que se projete para além da NATO. O Reino Unido continuará a ser um parceiro euro-atlântico valioso. De resto, é porventura no domínio da defesa que o Brexit vai ter menos impacto, porque o Reino Unido está a sair de uma União Europeia que está agora apenas a começar a trabalhar em profundidade nesta área. Temos uma relação antiga e muito importante com o Reino Unido, e saberemos tirar proveito desse relacionamento para benefício mútuo e para benefício da UE.

Como é que Portugal responde às exigências dos Estados Unidos, de cumprimento do compromisso de manter os gastos na Defesa acima dos 2% do PIB? Há tensões entre os EUA e os aliados europeus?

Os aliados na Cimeira de Gales em 2014 assumiram o compromisso de caminhar, de forma gradual, para os 2% de investimento na área da Defesa, durante os dez anos seguintes. Portugal assumiu este compromisso em conjunto com os demais Aliados, e continuará a fazer por cumpri-lo gradualmente. Contudo, não há números mágicos, e cingir a qualidade da nossa resposta à percentagem do PIB seria uma abordagem redutora e desadequada à complexidade dos desafios da segurança internacional. Os Aliados estão interessados na partilha de responsabilidades e na capacitação da Aliança Atlântica em todos os vetores de atuação, e Portugal pode dizer com orgulho que desde 1992 já contribuiu com mais de 30.000 militares para missões, e que temos hoje forças empenhadas na Polónia, na Roménia, no Afeganistão e no Iraque. Ao longo de 2019 contribuiremos para a segurança internacional, através da participação em 29 missões no âmbito das diferentes organizações em que estamos inseridos.

Pretende um aumento do orçamento da Defesa para cumprir com essas metas?

Sim, é o que está previsto. Portugal tem vindo a aumentar o investimento, de acordo com o plano entregue pelo primeiro-ministro no ano passado na NATO. A Lei de Programação Militar, que está em discussão no parlamento, prevê um aumento de cerca de 20M€ por ano, em cada ano até 2026. Ora este investimento vai marcar as Forças Armadas para um horizonte longo que vai muito além dos 12 anos de duração. Esta é uma lei que apresenta uma visão integrada e coerente das necessidades de defesa de Portugal, assegura os meios necessários para manter e reforçar a coesão entre todas as partes do território nacional, prestar apoio humanitário em situações de catástrofe – como se viu recentemente em Moçambique, mas de forma aplicável também em Portugal – e honrar os nossos compromissos internacionais para com países aliados.

Há planos ou abertura para a integração de novos membros na NATO? Quais seriam os países candidatos mais óbvios?  

Como sabe, Portugal advoga uma ‘política de porta aberta’ a este respeito, sendo que o processo de avaliação das candidaturas da Aliança Atlântica é dinâmico.

Há risco de uma escalada nas hostilidades no que toca às tensões com a Rússia? A entrada de novos membros na NATO, sobretudo países vizinhos da Rússia, pode aumentar a tensão, como aconteceu no passado?

Não vejo correlação. Eventuais tensões resultam de outras considerações e opções políticas, como o desrespeito pelo direito internacional. Se houver observância da Carta das Nações Unidas e dos compromissos assumidos em múltiplos instrumentos internacionais, o risco diminui.

Qual deve ser a posição da NATO face à presença russa na Venezuela?

A crise na Venezuela precisa de ser resolvida através do diálogo político. Não antevejo um papel para a NATO a esse respeito.

Qual é a posição de Portugal quanto a uma eventual intervenção militar na Venezuela?

Repito: a crise na Venezuela só pode ser resolvida através do diálogo político e da marcação de eleições democráticas. Não acredito que haja soluções militares para as dificuldades que se vivem nesse país.

Há algum cenário que coloque essa possibilidade?

Neste momento não temos esse cenário no nosso planeamento.

Como vê Portugal a saída dos Estados Unidos do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF)?

Portugal revê-se na posição da NATO quanto às responsabilidades da Rússia pela atual situação. Lamentamos que o Tratado esteja quase a deixar de ter validade e consideramos que continua a ser necessário encontrar mecanismos de concertação internacional no âmbito do desarmamento.

O rompimento do INF coloca o risco de uma nuclearização da Europa? Que desafios traz à Defesa portuguesa?

Os mísseis de alcance intermédio são somente um dos vetores pelos quais armas nucleares podem ser utilizadas – Portugal procura impedir que estas sejam usadas em qualquer circunstância. Como país multilateralista que somos, acreditamos que as soluções devem ser encontradas no plano multilateral.