Não há leis que acabem com as ‘cunhas’

Emmanuel Macron é Presidente da França, entre outras razões, por causa da revelação em plena campanha eleitoral de que a mulher e filhos de François Fillon (primeiro-ministro e candidato liberal que começou por liderar as sondagens) terão tido empregos fictícios no Parlamento francês, ela durante oito anos, quando o marido era deputado eleito por Paris…

Emmanuel Macron é Presidente da França, entre outras razões, por causa da revelação em plena campanha eleitoral de que a mulher e filhos de François Fillon (primeiro-ministro e candidato liberal que começou por liderar as sondagens) terão tido empregos fictícios no Parlamento francês, ela durante oito anos, quando o marido era deputado eleito por Paris e, depois, ministro de Chirac (tendo permanecido assessora do parlamentar que o substituiu). Fillon negou, mas ficou irremediavelmente afastado da corrida em que era apontado como o mais provável candidato a uma segunda volta contra Marine Le Pen.

Curiosamente, Marine Le Pen sucedeu a Jean-Marie Le Pen na liderança da Frente Nacional e, na mesma campanha eleitoral, pai e filha haveriam de trocar fortíssimas acusações, dizendo um do outro o que nem Maomé terá dito do toucinho. 

E a neta de Jean-Marie e sobrinha de Marine já segue os passos do avô e da tia, sendo que aquele foi entretanto expulso por esta e que Marion Maréchal (assim se chama a jovem) não usa o apelido Le Pen, que premeditadamente deixou cair.

Outra disputa familiar que fica para a história da política na Europa teve lugar no Reino Unido, em 2010, entre os irmãos Miliband. Ed e David confrontaram-se pela liderança do Partido Trabalhista, sendo o primeiro apoiado pelos sindicatos (Old Labour) e o segundo o representante da terceira via blairista (New Labour). Ganhou o irmão Miliband mais novo, também conhecido por ‘Red Ed’, por menos de um ponto percentual e após várias recontagens dos votos. 

A campanha fratricida ficou para a história, Ed liderou os trabalhistas até 2015, mas os dois irmãos só haveriam de reaparecer publicamente a falar juntos (e mesmo assim a partir de países diferentes) num programa de rádio em… 2017.

Continuando a falar de democracias consolidadas em países de primeiro mundo, vamos aos Estados Unidos. 

Bill Clinton foi forçado a pedir desculpa aos norte-americanos e particularmente à mulher,  Hillary, por ter mentido sobre a sua relação com Mónica Lewinsky, estagiária na Casa Branca. Mas os americanos e Hillary Clinton perdoaram-lhe e Bill viria a fazer campanha por Hillary – primeiro nas primárias contra Obama, nas eleições para a sucessão de Bush filho (George W.), e depois nas presidenciais contra Trump.

Hillary, mesmo com o apoio do marido ex-Presidente, perdeu para Trump e seu clã – com mulher e filhos em plano de destaque, primeiro na campanha e depois na Administração.

E foi com Trump que os republicanos regressaram ao poder – depois de George W. Bush ter cumprido dois mandatos antes de Obama e depois de Clinton e de o seu pai, George H.W. Bush (um mandato), ter sucedido a Ronald Reagan, de quem foi vice-Presidente, e precedido Clinton.

Mas em matéria de famílias na política norte-americana, é obrigatório recuar à segunda metade do século XX e aos icónicos Kennedy. Do idolatrado Presidente John Fitzgerald Kennedy, aos irmãos, como Robert (Bobby), que ele nomeou procurador-geral, ou Edward (Ted), senador, ou Eunice Kennedy Shriver, uma ativista que viria a ser sogra do ator que virou governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger.

E ao clã Kennedy há que acrescentar filhos, primos, sobrinhos e netos, por aí fora, com ligações à política e relações no cinema.

Sigamos agora para a Ásia. Na Índia, Rajiv Gandhi trilhou o mesmo caminho que a mãe, Indira, e também ele foi primeiro-ministro do Estado indiano fundado por Mahatma Gandhi – com quem Rajiv e Indira não tinham qualquer relação familiar, apenas partilhando o apelido. Indira é filha e Rajiv neto, sim, do primeiro primeiro-ministro após a independência da India, Jawaharlal Nehru. E a tradição de líderes políticos da família Gandhy continua atualmente assegurada pelo bisneto de Nehru, Rahul, líder do Partido do Congresso Nacional Indiano.

Ou seja, tal como nas dinastias monárquicas – das quais sempre saíram bons e maus governantes, bons e maus exemplos -, também nas famílias republicanas em sentido literal há bons e maus exemplos e bons e maus governantes, com maior ou menor sentido de Estado e maior ou menor sentido de missão e serviço político.

Há, portanto, casos e casos. Sendo que a questão se torna obviamente grave quando os laços familiares são o critério ou padrão prevalecente. E sobretudo quando em causa estão nomeações ou colocações no aparelho do Estado, na Administração Pública, Central ou Local, beneficiando-se o familiar em detrimento de terceiro mais qualificado.

As boas práticas e boas regras valem tanto para familiares como para amigos ou para familiares de amigos ou, simplesmente, para amigos de amigos. 

No fundo, as chamadas ‘cunhas’.

Por mais leis que se façam e fórmulas que se arranjem, as ‘cunhas’ fazem parte da nossa cultura e da nossa história. E, infelizmente, não imperam só na política e muito menos num só partido – ainda que haja sempre uns mais vulneráveis do que outros. Há-as por todo o lado e para tudo.

E que isso seja tema de campanha eleitoral também não é problema algum. Antes pelo contrário. Para o mal e para o bem. 

Haja é transparência. E moral.