Venezuela. Entre o golpe e a repressão, Caracas está a ferro e fogo

“O momento é agora”, afirmou Guaidó, que tentou arrancar o poder das mãos de Maduro com um golpe militar.

A crise política da Venezuela, que se arrastava há meses, explodiu esta terça-feira numa tentativa de golpe de Estado. É o tudo ou nada para Juan Guaidó, o autoproclamado Presidente interino, que lançou um último esforço para arrancar o poder das mãos do Presidente Nicolás Maduro. A tentativa começou de madrugada, na ponte Altamira – uma das principais vias de comunicação de Caracas – onde Guaidó publicou um vídeo no Twitter, rodeado de elementos das forças armadas, garantindo ter um “apoio amplo” entre os militares e chamando a população a “sair às ruas”, no que apelidou de Operação Liberdade. “O momento é agora”, assegurou Guaidó.

Os mais atentos foram surpreendidos por Guaidó aparecer ao lado do seu mentor, Leopoldo López, que se assumia estar em prisão domiciliária. O fundador do Vontade Popular cumpria uma pena de quase 14 anos de prisão, por alegado incentivo à violência, tendo organizado manifestações em que vários chavistas foram queimados vivos, enquanto a oposição defende que López era um prisioneiro político. Diosdado Cabello, presidente do Partido Socialista Unido Venezulano (PSVU) diz que López foi libertado por agentes da Sebon, as secretas militares venezuelanas, cujo diretor, Manuel Cristopher Ferreira, é considerado um dos líderes do golpe de Estado. Apesar de ainda há pouco tempo ser acusado de tortura e abusos pela oposição, “é praticamente quem dirige a operação”, disse à Union Radio, Gerardo Márquez, deputado na Assembleia Constituinte pelo PSVU.

Contrastando com a imagem de militares armados atrás de si, Guaidó assegurou a sua defesa da “luta não violenta”, pouco antes de apelar à população para dirigir-se à base aérea de La Carlota, rapidamente cercada por uma multidão, onde se misturaram os militares leais ao líder da oposição. Os dissidentes distinguiam-se dos militares apoiantes do Governo por uma bandana azul, com a qual muitos tapavam o rosto.

O Governo considerou os revoltosos “um pequeno grupo de traidores” e apelou à população para acorrer a Miraflores, para proteger o Presidente, fazendo um cordão humano, que contou ainda com membros das milícias. Estes grupos de cidadãos armados, que se estima terem quase 2 milhões de membros, são ferozes defensores da revolução bolivariana.

Rapidamente a situação descambou para confrontos em La Carlota, entre as forças governamentais e manifestantes que tentavam entrar no complexo e atiravam pedras para o interior. Os soldados tentaram dispersar a oposição com gás lacrimogéneo e canhões de água, enquanto testemunhas contaram à Reuters ter visto uma troca de fogo real entre militares de ambos os lados do conflito. Pelo menos sete manifestantes ficaram feridos, segundo a oposição, enquanto o coronel Yerzon Jiménez Báez terá sido baleado no pescoço, segundo o ministro da Defesa venezuelano, Vladimir Padrino. 

Vários vídeos mostram os momentos de horror às portas de La Carlota, em que alguns blindados avançaram sobre a multidão, acabando um deles por atropelar vários manifestantes da oposição. Apesar da base área continuar sob controlo do Governo, um dos hangares parece ter sido incendiado, com várias aeronaves a serem retiradas do local. 

No resto da cidade reina o caos, com militares a prenderem militares. A autoestrada Francisco Fajardo foi bloqueada por camiões atravessados na via, enquanto os transportes públicos ficaram paralisados. Guaidó surgiu de novo na Praça de Altamira, rodeados de militares rebeldes e discursando perante uma multidão em cima de uma carrinha. “Hoje é claro que as forças armadas estão com o povo e não com o ditador”, assegurou o autoproclamado Presidente.

Apesar das garantias de Guaidó, a maioria das chefias miliatres posicionaram-se ao lado de Maduro. Ao lado de dezenas de generais e perante centenas de soldados, o ministro da Defesa garantiu a lealdade dos militares ao Governo, dizendo que 80% retornaram às suas unidades. Padrino acusa a tentativa de golpe de ser parte de uma “guerra híbrida”, o culminar de uma ofensiva política, económica e diplomática orquestrada pelo “imperialismo norte-americano e os seus lacaios”. 

O conselheiro de Segurança Nacional do Estados Unidos, John Bolton, já mostrou apoio do seu Governo a Guaidó. Os EUA estão entre os principais apoiantes de Guaidó, impondo debilitantes sanções económicas sobre a Venezuela, em particular no setor energético. “Já temos estado a planear o dia após da queda de Maduro. Podemos dar muito apoio ao Governo de Guaidó”, disse Bolton aos jornalistas. Teme-se que caso a oposição falhe em tomar o poder, se siga uma intervenção militar dos EUA, em apoio ao autoproclamado Presidente. Bolton repetiu que “todas as opções estão em aberto”.

No cenário de uma intervenção militar, seria fundamental o apoio da Colômbia e do Brasil, países vizinhos e aliados dos EUA. O Governo brasileiro reuniu de emergência logo após o inicio das hostilidades, tendo o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, expressado “solidariedade” com a sua “nação-irmã”, que considera “escravizada por um ditador”. O Presidente colombiano, Iván Duque pediu que todos os militares apoiem Guaidó, colocando-se “do lado certo da história”.

O Governo de Maduro conta com substancial apoio da parte da Rússia, que admitiu à poucas semanas ter enviado para o país quase uma centena de conselheiros militares. O Kremlin optou pela cautela, pedindo “um processo de negociação responsável, sem condições prévias”, salientando a importância de “evitar a desordem e derramamento de sangue”. 

Outro aliado do Governo é Cuba, que Bolton acusou de ter “um papel significativo em manter Maduro no poder”. O Presidente cubano, Miguel Díaz-Canal, acusou Guaidó de “usar tropas e policias com armas de guerra na via pública da cidade, para criar confusão e terror”.