Venezuela. O golpe de Estado falhou e o Governo canta vitória

Entre a demissão do diretor das secretas e o suposto recuo do ministro da Defesa, está por saber porque é que Guaidó ainda não foi preso. Suspeita-se de negociações com os russos, que teriam aceite a queda de Maduro a troco do pagamento de dívidas. 

O golpe de Estado prometido esta terça-feira, pelo autoproclamado Presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, a chamada Operação Liberdade, não parece ter pernas para andar. O “apoio amplo” das forças armadas para o “fim da usurpação” – que apoiaria os civis convocados para as ruas por Guaidó – nunca se materializou. Ontem voltaram a haver confrontos, após as mobilizações do 1º de Maio, com os manifestantes da oposição a serem rechaçados por forças governamentais, com recurso a gás lacrimogéneo e veículos blindados – sem nenhum apoio de militares leais a Guaidó à vista. 

O Presidente venezuelano, Nicolás Maduro, já canta vitória sobre as forças da oposição, assegurando logo no dia seguinte que o Governo “emergiu vitorioso de todas as batalhas”. Contudo, por momentos pareceu que as coisas estavam malparadas para Maduro. Guaidó surpreendeu aparecendo num vídeo do Twitter, ao lado de vários elementos das forças armadas, indicando um apoio que não se tinha visto até então. Para além de estar acompanhado de Leopoldo López, que se suponha estar em prisão domiciliária, mostrando que os revoltosos tinham capacidade operativa suficiente para libertar aquele que é considerado o cérebro por de trás de Guaidó. 

O desaparecimento de Maduro, que demorou mais de cinco horas a reagir ao levantamento, alimentou a especulação sobre fraturas entre os militares. Acabaria por se saber que à cabeça dos militares revoltosos estaria Manuel Cristopher Figuera, o todo poderoso diretor da Sabin, os serviços militares da Venezuela – algo que explica a facilidade em libertar López. Ainda há pouco tempo Figuera era acusado pela oposição de organizar perseguições, tortura e violações dos direitos humanos, mas isso não parece tê-lo impedido de apoiar a tentativa de golpe de Estado.

O secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, chegou a afirmar que Maduro “tinha um avião já na pista, pronto para partir”, logo de manhã, e que terá ficado por indicação russa. Algo desmentido pela porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova, que considerou: “Washington tentou ao máximo desmoralizar o exército venezuelano e agora utilizou mentiras como parte de uma guerra de informação. Ontem, referindo-se à suposta fuga preparada, Maduro disse apenas: “Señor Pompeo, por favor”.

Entretando, sucederam-se os confrontos violentos um pouco por todo o país, sobretudo à volta da base aérea de La Carlota, em Caracas, onde as forças governamentais suprimiram a oposição com recurso a gás lacrimogéneo. Houve trocas de tiros entre militares dissidente e as forças de segurança, que chegaram a atropelar vários manifestantes com carrinhas blindadas.

No meio de contrainformação, o Presidente venezuelano acabou por reaparecer e negar qualquer fratura nas forças armadas, dizendo ter falado com todos comandantes militares, que terão reafirmando a sua lealdade. De facto, os twitters dos vários centros operacionais em Caracas continuaram todo o dia a lançar apelos pró-Governo. Esta terça-feira à noite Maduro garantiu que contrariamente ao que foi noticiado, todas as bases militares continuaram sempre sobre firme controlo do Governo – apesar das imagens mostrarem um incêndio num hangar em La Carlota, cuja origem ainda está por explicar.   

Desde a primeira hora que o ministro da Defesa, Vladimir Padrino, veio a público para denunciar “o movimento golpista que pretende trazer a violência ao país”, desdobrando-se em conferências de imprensa conjuntas com muitos dos altos quadros militares e com as tropas de elite, assegurando que 80% dos efetivos regressaram às suas casernas. “A soberania nas armas, na violência, na intervenção, mas no povo”, proclamou o ministro da Defesa, ao lado de José Ornella Ferreira, um major-general luso-venezuelano, apontado pela oposição como suposto líder militar do golpe e que reafirmou o seu apoio a Maduro. 

Contudo, Padrino está entre as três altas patentes que terão negociado a saída de Maduro com a oposição e com os seus aliados norte-americanos, segundo o conselheiro de segurança nacional dos EUA, John Bolton – que referiu também o presidente do Supremo Tribunal, Maikel Moreno, bem como o comandante da guarda presidencial, Iván Rafael Dala. Bolton afirmou que os conjurados terão recuado no último momento, levando até a um apelo da família de Padrino, para que este apoiasse a oposição. “Sabemos o difícil que deve ser estar no teu lugar”, disse a mãe do ministro da Defesa, Carmen Padrino, num vídeo endereçado ao filho, em que pediu que se colocasse “do lado do povo”, para “conseguir uma Venezuela livre”.

Esta narrativa é reforçada por um comunicado de Figuera, após ser destituído do seu cargo esta terça-feira à noite, pelo Presidente venezuelano. O ex-diretor das secretas teceu críticas àqueles que se “atreveram” a chamar-lhe “traidor ou vendido”, escrevendo a Maduro: “Descobri que muitas pessoas da sua confiança estavam a negociar nas suas costas. Mas não negociavam pelo bem maior do país. Faziam-no pelos seus próprios interesses mesquinhos”. “Posso olhá-lo e ao alto comando militar nos olhos, mas alguns deles não são capazes de manter o olhar”, rematou Figueras, que diz ter sempre reconhecido  Maduro como Presidente, mas reafirmou a sua determinação em “reconstruir o país e reordenar o Estado”.

Figueras foi substituido pelo seu antecessor na liderança da Sebin, Gustavo González López, fazendo Guaidó perder um dos poucos aliados declarados no seio das forças armadas. O seu mentor, Leopoldo López, já procurou refúgio na embaixada do Chile, tendo seguido depois para a embaixada de Espanha, dado ter família espanhola – o pai de López, Leopoldo López sénior, é até candidato do Partido Popular nestas eleições europeias. Espanha, como outros 52 países e a União Europeia, reconhecem Guaidó como Presidente interino da Venezuela. O Governo de Pedro Sáchez hesitou em apoiar explicitamente a tentativa de golpe de Estado, preferindo que se dê um “processo democrático pacífico”, que leve de imediato a eleições e desejando que “não se produza derramamento de sangue”. Já o líder do PP, Pablo Casado, exigiu no Twitter que o Governo espanhol garanta a segurança de Leopoldo López e da sua esposa, Lilian Tintori. 

López ainda não terá pedido asilo a Espanha, segundo fontes do El País, mas a decisão de se refugiar na embaixada não mostra grande confiança por parte da oposição, que parece contar apenas com as manifestações civis convocadas por Guaidó para o 1.º de Maio. A escolha da data mostrou também as tentativas do líder da oposição em disputar as principais centrais sindicais venezuelanas, tradicionalmente apoiantes do Governo. Guaidó apelou à “maior marcha” da história da Venezuela, e centenas de milhares de pessoas juntaram-se para ouvir o autoproclamado Presidente na Praça de Altamira, o centro histórico da oposição em Caracas. 

Discursando perante os seus apoiantes, Guaidó reconheceu que Maduro continua a controlar o exército, admitindo ainda que os seus apoios no levantamento de terça-feira “não foram suficientes”. “Vêm aí dias duros de ataque, perseguição e caça às bruxas dentro das forças armadas”, considerou o autoproclamado Presidente. No entanto, mostrou-se confiante de que “o fim da usurpação está próximo, está já ali à esquina, desde que nos mantenhamos nas ruas”. Guaidó mostrou-se também decidido a “continuar a libertar presos políticos” – um objetivo dificultado pela revelação dos seus apoios entre a casta militar. Foi notória a ausência na mobilização dos militares armados, identificados por badanas azuis, que acompanharam Guaidó na tentativa de golpe desta terça-feira, sendo atribuída ao reconhecimento da oposição que a tomada de poder pelas armas falhou, regressando às suas anteriores táticas não-violentas, para não convidar a uma maior repressão governamental. Contudo, muitos dos seus apoiantes de Guaidó seriam alvos das forças de segurança, nos confrontos após o seus discuros.

  Mas o Dia dos Trabalhadores, que em geral conta com grandes mobilizações chavistas, viu também uma onda de apoiantes do Governo inundar a zona oeste da cidade, à volta do Palácio de Miraflores, após o presidente da Assembleia Constituinte, Diosdado Cabello, ter pedido de novo aos apoiantes do Governo que se reunissem para defender o Presidente. Entre as pessoas mobilizadas encontravam-se membros das milícias, grupos de civis armados, defensores da revolução bolivariana. “Aqui vão encontrar um povo unido”, assegurou Cabello. 

Falta saber como é que, apesar do mandato de captura de Guaidó, emitido pelo Supremo Tribunal, este não foi ainda detido pelo seu incentivo à rebelião. Maduro, ao lado do ministro da Defesa, avisou que a tentativa de golpe de Estado “não pode ficar impune”, assegurando que “todos os envolvidos já estão a ser interrogados” decorrendo investigações e que “haverão acusações penais diante dos tribunais”. Contudo, o Governo parece não ter pressa em agir, como ilustra bem a presença de Guaidó nas mobilizações, sem qualquer tipo de impedimento. 

As explicação mais óbvia é o receio do Governo quanto às implicações diplomáticas de uma detenção de Guaidó, bem como os receios de que sirva como pretexto para uma intervenção militar norte-americana – algo que o Governo já teme desde os tempos do anterior Presidente, Hugo Chávez.  

Mas outra explicação é dada por fontes do El Español, que relacionam a hesitação de Maduro com a falta de apoio internacional dos seus aliados russos, chegando a afirmar que Vladimir Putin teria aceitado a saída do Presidente, a troco de um processo de transição que garantisse que a dívida venezualana à Rússia seria paga integralmente pelo Executivo de Guaidó. Algo que explicaria a posição cautelosa do Kremlin a reagir à tentativa de golpe de Estado, apelando à “negociação responsável, sem condições prévias” entre ambas as partes.

Segundo o jornal espanhol, Maduro já teria aceite, até o negócio ser estragado pela resistência do presidente da Assembleia Constituinte – considerado o líder da ala esquerda do Partido Socialista Unido Venezuelano (PSUV). Segundo o El Español, Cabello ter-se-á movido para ordenar a detenção do autoproclamado Presidente, algo que terá forçado Guaidó a tentar tomar o poder um dia mais cedo do que o previsto – com os resultados que se viram. Seja qual for o motivo, a situação só promete escalar nos próximos dias.