‘Disseram-me que dificilmente voltaria a jogar’

Tem 23 anos e vai ter para sempre gravado o seu nome na inédita conquista do Sporting em futsal. Mas Erick Mendonça é muito mais do que um campeão europeu. Até aqui chegar, teve que vencer as duras batalhas da vida: passou grande parte da infância e da adolescência (mais de sete anos) agarrado a…

‘Disseram-me que dificilmente voltaria a jogar’

O título de Campeão Europeu chegou na altura certa ou o Sporting precisava mesmo de um Erick?

[Risos]O Sporting precisava da altura certa, mas não precisava de um Erick Mendonça. Acho que foram três anos muito difíceis. Agora foi a altura exata, se calhar num ano em que fomos mais criticados pelo futsal que praticávamos , o que também acaba por ser positivo. Comentávamos  entre nós que por vezes o facto de se ganhar tanto e tantas vezes não nos põe em situações de desvantagem tanto quanto deveria ser o normal. Este ano, o facto de termos estado em situação de desvantagem mais vezes fez-nos ganhar mais calo e correr atrás do resultado, de saber estar em desvantagem. Fomos aprendendo com tudo isso e culminou com a conquista da Liga dos Campeões.

Já voltamos ao Cazaquistão. Antes, Erick Olim Mendonça, nasceu no México.

Sim, sim.

Com que idade vem para Portugal?

Eu venho mesmo muito novo, com um ano de idade.

Ah, então já não tem recordações nenhumas…

Não, muito pouco, muito pouco.

Como surge o futsal na vossa vida? Digo ‘vossa’ porque tem um irmão e uns primos que também praticam a modalidade, certo?

Não tenho um irmão no futsal. É uma notícia que toda a gente dá, mas ele não é meu irmão, nós somos muito parecidos, mas o Bernardo Mendonça [Futsal Oeiras] é meu primo. O futsal entra na minha vida porque é parte integrante da minha família. A Quinta dos Lombos foi um clube criado através da minha família, com alguns dos meus tios, e então desde muito cedo que pratico a modalidade. Os meus primos mais velhos jogaram sempre nesse clube e o bichinho nasceu aí.

E sabe como surgiu a ideia de fundar o Quinta dos Lombos?

A Quinta dos Lombos é um bairro. Nesse bairro foi criado o clube Centro Recreativo e Cultural da Quinta dos Lombos por algumas pessoas que ali viviam, entre os quais o meu avô e alguns dos meus tios. Por isso, sempre tive uma relação muito forte com o clube. Eu não sei especificar bem o porquê, calculo que seja porque no bairro existia um ringue muito velhinho e era o que se praticava. Na altura nem era futsal, era futebol de salão, e o bichinho da família foi muito por aí. Quando se cria o clube joga-se naquele ringue e pratica-se a modalidade que é possível com aquelas condições. Depois todos os famíliares ingressam naquele clube, desde os tios, aos primos, a todos. De geração em geração todos praticam ali na Quinta dos Lombos a modalidade.

E foi no Quinta dos Lombos que tudo começou, onde esteve durante cinco épocas até receber o convite do Sporting…

Estive na Quinta dos Lombos bem mais do que cinco anos, mas em escalões mais iniciados. Quando recebi o contacto do Sporting [2012/13] para ingressar nos juniores reagi com bastante alegria, não estava à espera. Sabia que o Sporting tinha ido ver um jogo nosso não para me ver a mim mas sim o meu primo. Na altura disseram: ‘Se vais ver o Bernardo tens que ver o Erick também’. Fiquei bastante feliz.

A verdade é que na segunda época enquanto júnior do Sporting (2013/14) fez logo a pré-temporada com a equipa sénior.

Fiz a pré-época e também alguns jogos, mas é no meu terceiro ano de júnior que estou com mais regularidade com os seniores.

Entretanto ainda regressou ao Quinta dos Lombos (2015/16) por uma época, e esteve outras duas no AD Fundão (2016/17; 2017/18). Depois de já ter feito a estreia pelo Sporting, como foi voltar a casa e, depois, aquela experiência na equipa beirã?

A passagem foi muito positiva e gratificante porque era uma casa que conhecia bastante bem, apesar de ter sido difícil a adaptação a uma realidade diferente. A Quinta dos Lombos era um clube que tinha acabado de subir à 1ª divisão e até de uma forma bastante peculiar –precisava de dois resultados e acabou por correr tudo bem. Basicamente, eu passo de um padrão estritamente profissional, os seniores do Sporting, para um patamar ainda muito amador, o que tornou a adaptação muito difícil. Felizmente, a Quinta dos Lombos tem um projeto muito, muito bom e conseguiu cativar-nos. Fizemos uma grande temporada, mas o início não foi fácil. Depois fui para o Fundão, que na altura era um clube bastante grande e ainda o é a nível nacional. Fui à procura de outros títulos. O Fundão na altura disputava o play-off, a Taça de Portugal, o acesso à Taça da Liga e fui com o âmbito de tentar melhorar.

Em 2018, ainda jogava no Fundão, foi chamado para integrar a Seleção nacional, muito pouco tempo depois de Portugal ter conquistado o também inédito Europeu. Como se sentiu?

Foi bastante gratificante. Eu já tinha estado na Seleção enquanto atleta dos sub-21, mas chegar ao escalão A é diferente, era um sonho que tinha. Consegui atingir esse nível numa fase em que Portugal é Campeão Europeu. Sei que fui chamado nessa altura, parece-me, porque o Sporting ingressa na UEFA e fazem algumas experimentações nessa fase. Não me tira o mérito de ter lá chegado e foi com bastante felicidade que recebi o convite.

Sei que além dessa luta diária de um futsalista, passou por uma fase muito complicada, chegando a ficar com a mobilidade reduzida. Pode contar-nos o que aconteceu? Foi uma lesão?

Sim, quer dizer não é bem uma lesão, isto acontece-me aos sete anos. Tive uma doença bastante grave que me deixou de cama e internado, que se chama doença de Perthes, uma doença bastante rara. A cabeça do fémur desfaz-se por completo e temos de fazer tração numa cama. Temos de ser internados, andar de cadeira de rodas durante muito tempo, bem como de muletas. Eu não sei esclarecer muito bem de que forma é que depois se regenera, porque não me lembro de tomar nenhum tipo de suplemento ou de fazer algum tipo de dieta mais rigorosa, mas regenera-se talvez pelo corpo humano em si.

Mas fez fisioterapia?

Sim, sim, sessões de fisioterapia e natação. Não podia pôr o pé no chão, fiquei muito tempo internado. Não fiquei tanto tempo quanto era necessário, porque na altura não tínhamos dinheiro para pagar um tratamento tão demorado, mas fizemos, com o mesmo tipo de instrumentos, o aparelho em casa. Tinha uma espécie de duas roldanas que se prendiam à parede e faziam peso sobre as minhas pernas para fazer tração. Foi uma altura bastante difícil. Eu tinha sete anos e só por volta dos 14 é que tive alta, acabando por ser a melhor recuperação em Portugal, com 97% do fémur reconstituído. Tive sorte, porque me manifestei muito cedo sobre esta doença, que geralmente acontece com uma dor na virilha ou na anca. Na altura, eu jogava muito à bola e queixei-me à minha mãe, que me dizia sempre: ‘Oh, isso é uma entorse ou uma lesão que fizeste a jogar à bola’. Como começou a ser constante e eu, durante duas semanas, fui dizendo sistematicamente: ‘Mãe, mas dói-me, dói-me, dói-me’, fomos ao médico. No mesmo dia em que fui, já não saí do hospital.

E felizmente foi detetado numa fase inicial…

Isso mesmo. Eu não conhecia a doença mas, depois, a minha mãe ia pesquisar nos fóruns, tivemos que nos informar. Descobrimos que não é assim tão incomum as pessoas manifestarem-se muito tempo depois, acabando por não haver grande volta a dar e têm que amputar as pernas ou colocar próteses.

Foi uma carreira que esteve em risco? Como é que uma criança daquela idade lida com uma situação destas?

Sim, sim, disseram-me que ia ser muito complicado voltar a jogar à bola. Sempre me custou muito sair de cadeira de rodas de casa e ver os putos a jogar à bola e eu ali na cadeira ou mesmo de muletas. Lembro-me que levava muito na cabeça porque, já na fase das muletas, tinha muita vontade de jogar à bola e sentava-me no chão a dizer que era o guarda-redes [faz o gesto de levantar as muletas para o ar]. Foi uma fase muito, muito, muito difícil. A minha mãe sofreu muito, muito mesmo. A minha mãe criou-me sozinha, o meu pai ficou no México, então a minha mãe teve sempre que suportar muito das minhas dores e muitos dos problemas da minha irmã, que também os teve.

É um exemplo de superação. Acha que é um espelho para os mais jovens?

As pessoas nem têm muito essa noção, porque não é uma coisa de que falo. Seja de ter vindo para Portugal, de ter tido aquela doença, portanto, penso que não é por aí. Eu não exponho muito o que me aconteceu, mas claro que, para quem sabe, vê-me como um exemplo. Eu tenho noção disso, principalmente na Quinta dos Lombos. Vingar na modalidade é algo muito gratificante e completamente inesperado. Era um objetivo que eu tinha e trabalhei muito, mas nem eu algum dia imaginei que ia ser campeão da Europa depois de ter estado de cadeira de rodas e de muletas. É muito gratificante.

O que se sente quando se ouve o apito final em Almaty?

Se me perguntarem sobre o jogo ou as emoções que senti quando terminou eu não sei dizer. A adrenalina estava no máximo. Há uma imagem minha a correr à volta do campo e lembro-me que pensei: ‘Como é que é possível? Somos efetivamente campeões europeus’.

Antes de disputar a final, a equipa criou algum grupo no whatsapp propositadamente para a ocasião?

Já temos um grupo da equipa. Não, não, criamos nenhum por causa da UEFA.

A verdade é que se, para o Sporting, à quarta foi de vez, para o técnico Nuno Dias [ver pág. 4-5 b,i.] foi à terceira, mas para o Erick foi à primeira….

É verdade! Muito, muito especial!

Acha que este título teve um sabor especial até por terem conseguido derrotar nas meias-finais o InterMovistar, que nos últimos dois anos foi o responsável por ter adiado esta conquista?

Não gosto de chamar vingança, porque acho uma palavra muito forte e feia para o desporto, não é que seja feia mas é muito forte, e eu também não a senti de perto porque não estive nesses dois jogos. Mas sentia-o muito pelos meus colegas. O peso da derrota e a vontade de lhes querer ganhar senti tanto quanto eles. Foi muito bom até por sabermos que era a equipa favorita à vitória e quando se elimina uma dessas equipas ganhamos uma confiança enorme. Sentia-se mesmo a confiança que ganhámos depois de eliminar o Inter.

Sentiram que 90% do caminho estava feito?

Não, não, até porque a equipa que apanhámos na final [Kairat] tinha-nos derrotado na main-round. Sabíamos que ia ser tão ou mais difícil porque estavam a jogar em casa. No jogo das meias finais tinham conseguido ter 12.000 pessoas num pavilhão. Sabíamos que ia ser difícil, se calhar não tanto a nível técnico, mas mais na base da força, do físico e da agressividade. No entanto, claro que os índices de confiança aumentaram muito porque tínhamos eliminado uma equipa que nos tinha derrotado por dois anos seguidos. Foi uma energia muito grande.

Precisamente nessa derrota do main-roun (2-1), o único golo do Sporting foi da autoria do Erick. Fez três golos nesta Champions. Marcar em competições como esta têm outra importância?

Marco poucos, por isso, para mim, cada vez que o faço é muito especial [risos]. Toda a envolvência que esta competição traz é diferente. Nós disputamos o melhor dérbi, pelo menos no meu entender, do futsal mundial, que é o Sporting-Benfica, e todos os atletas que ingressam no Sporting e  têm a oportunidade de o disputar, sabem que é incrível. Mas depois de estarmos numa Champions League e vermos aquele ambiente e aquela atmosfera… é completamente diferente, só está ao nível dos melhores, e nesse sentido claro que têm um sabor especial. Fazer golos na Champions é mágico.

Agora o Sporting vai à procura de outro feito histórico, o tetracampeonato. O play-off começa no sábado [hoje] precisamente frente… à Quinta dos Lombos, com o primeiro jogo dos quartos-de-final. Qual o significado que tem para si?

Já joguei muitas vezes contra a Quinta dos Lombos e ao fim de um tempo já se cria o hábito, agora já não me custa. Claro que os primeiros jogos foram um bocado emotivos e especiais, mas agora tem um sabor normal como jogar contra qualquer outra equipa, até porque se é um adversário temos que o eliminar. Tenho uma grande estima pelo clube mas isso não me faz mudar de opinião nem de ser menos exigente comigo. Vai ser um jogo disputado de forma normalíssima.

A confirmar-se a conquista do inédito tetracampeonato, o Sporting pode também alcançar um registo nunca antes conseguido por nenhum clube português: conquistar quatro das principais competições numa só temporada (já venceu a Taça de Portugal, Supertaça, Liga dos Campeões – só perdeu a Taça da Liga para o Elétrico). Seria a confirmação de um ano de sonho na sua primeira época ‘a sério’ no clube…

Era ouro sobre azul, era top. Mesmo o tetracampeonato, que nunca foi conseguido, nós termos a possibilidade de o fazer… Era muito bom. Depois de uma Champions League conseguirmos atingir o tetracampeonato, era perfeito.

O foco e as rotinas dos jogadores já normalizaram? Os índices de adrenalina já estão mais controlados?

Já, já, até porque aqui, neste clube, não há espaço para desleixos. É um clube muito exigente, mesmo o campeonato não tem paragens para festejos nem nada. Portanto é hora de meter o trabalho em prática. Sabemos que existe uma descompressão normal, mas não podemos deixar que isso nos influencie. Já tivemos muito tempo para festejar e fizemos uma festa muito bonita. Agora é tempo de voltar ao trabalho.

Tem contrato com o Sporting até 2021. Quais os próximos objetivos?

Tenho alguns objetivos mas vou guardá-los para mim, até conseguir cumpri-los. [risos] Ainda tenho uns anos com o Sporting e vamos ver se continuam a correr de feição.