Martha Gellhorn: Entre a felicidade e o precipício

Jornalista, repórter de guerra, escritora e viajante, abominava duas coisas acima de tudo: o tédio e que lhe fizessem perguntas sobre Ernest Hemingway, o seu segundo marido. Dizia que fora durante os casamentos que se sentira mais sozinha e que preferia viajar num navio cheio de dinamite a fazer um cruzeiro. “Cinco Travessias do Inferno”,…

Afirma a sabedoria popular (não faço ideia com base em que provas) que quando uma pessoa se está a afogar vê a vida toda num instante antes do último trago, o fatal», escreveu Martha Gellhorn a propósito da sua atribulada viagem à China em 1941. «Posso afirmar que nos segundos, quantos não sei, que durou aquela descida tive tempo para pensar em muita coisa. Sabia que as asas se iam separar do resto do avião. Talvez nos despenhássemos antes de as asas se irem mas, de qualquer maneira, a sobrevivência seria impossível. Queria dizer ao C. R. que me arrependia amargamente de o ter chateado para me acompanhar naquela viagem horrorosa e nunca me perdoaria de ser a causa da morte dele, levado assim no seu primor, sem terminar o seu trabalho, deixando os filhos sem pai; o meu coração partia-se com pesar pelo C. R., atormentado por culpa. O C. R., que se mantinha numa estranha posição rígida, segurava o copo com ambas as mãos, de olhos fixos no teto da cabine. Se não fosse o copo, passava por estar a rezar».

Quem seria o infeliz cavalheiro, questiona-se o leitor, pai de três filhos, que Gellhorn arrastara consigo para uma morte certa, depois de semanas a passar os tormentos da fome, do frio e do desconforto enquanto tentavam acompanhar os movimentos do Exército Chinês para repelir os invasores japoneses? Alto (1,83m), bem constituído e ostentando um bigode castanho escuro, C. R. (as iniciais para Companheiro Relutante) era então um escritor já de créditos firmados, tendo publicado alguns dos livros por que se tornaria célebre. Por coincidência, 13 anos mais tarde haveria de voltar a fintar a morte em dois acidentes de avião em dias consecutivos, quando fazia um safari em África.

Gellhorn e Ernest Hemingway haviam-se conhecido em 1936 num bar de Key West, na Florida, o Sloppy Joe’s – o poiso favorito do escritor para matar a sede. Ele ofereceu-lhe uma bebida e ela viu nele «um homem grande e sujo», o que não a impediu de segui-lo para Espanha apenas uns meses depois. Em Madrid, no meio da guerra civil, iniciariam uma relação que daria em casamento. Robert Capa fotografou o enlace. A «viagem horrível» à China foi uma espécie de lua-de-mel. Seguiu-se um período de vida em comum numa quinta em Cuba, onde ele escreveu Por Quem os Sinos Dobram.

O episódio do avião em queda integra a coletânea Cinco Travessias do Inferno, originalmente publicada em 1978 e agora editada em Portugal pela Tinta da China na coleção de literatura de viagens coordenada por Carlos Vaz Marques.

Gellhorn foi uma mulher inquieta e uma viajante intrépida que não virava a cara a uma promessa de aventura. Depois de 18 dias a atravessar o Atlântico num barco carregado de explosivos, escreveu: «Se tiver de escolher entre um navio de cruzeiro e um navio cheio de dinamite não hesitaria» – optaria pelo segundo, bem entendido. O seu maior receio era o tédio e por isso passou grande parte da vida a cobrir conflitos. Além da Guerra Civil Espanhola, esteve em várias frentes da Segunda Guerra Mundial. Em Dachau, viu as «criaturas esqueléticas que exalavam um cheiro a doença e a morte»; na véspera do Dia-D escondeu-se na casa de banho de um navio-hospital e assim pôde presenciar o desembarque das tropas aliadas na Normandia; e chegou a dormir com soldados por piedade. Cobriu a guerra do Vietname, a Guerra dos Seis Dias e conflitos na América Latina, assinando aquelas que foram consideradas «as melhores reportagens de guerra alguma vez escritas».

A sensação de flutuar

Cinco Travessias do Inferno oferece uma amostra das suas deambulações pelos quatro cantos do mundo e das suas peripécias. A autora definiu-o como «um relato das minhas melhores viagens horrorosas, escolhidas a dedo entre uma ampla seleção, recordadas com ternura agora que fazem parte do passado». Começando na China, leva-nos depois às Caraíbas – não ao destino tropical, mas a um purgatório que conjuga aborrecimento e perigo -, África, Rússia e Israel. O capítulo sobre África constitui sem dúvida o prato principal deste banquete.

Ao volante de um Land Rover decrépito, por estradas em pior estado ainda do que o jipe, Gellhorn mostra-nos a fibra de que é feita. Há momentos em que fazemos figas para que não fique empanada numa qualquer vereda africana; outros em que maldizemos Joshua, o condutor imprestável que se recusa a conduzir e que nem carta de condução tem; outras ainda em que quase sustemos a respiração para vermos se consegue chegar ao destino antes de o sol se pôr.

Mas há também momentos de puro júbilo, daqueles em busca dos quais todo o viajante sai de casa. Como este: «Comi sanduíches e escutei o silêncio que existe sob o zumbido constante dos insetos em África e pensei que talvez fosse ter ataques diários de felicidade porque ali estava ela novamente, a sensação de flutuar».

Escândalo e arrependimento

Nascida em Saint-Louis, Missouri, em 1908, Martha Gellhorn era filha de um médico ginecologista – o único na cidade – e de uma feminista que a levava a comícios. Terminada a licenciatura, em 1927, começou a publicar nos jornais e conseguiu uma viagem para a Europa a troco de escrever um panfleto para uma companhia de navegação. Na Paris de 1930 causou escândalo por se juntar com o escritor Bertrand de Juvenel. Acabariam por se casar, mas não resultou. Martha arrependeu-se «amargamente», até porque o pai nunca lhe perdoou a ligação ao francês.

De regresso aos Estados Unidos, em 1934, recebeu do confidente do Presidente Roosevelt (de quem se tornaria amiga) a encomenda de escrever um livro sobre a Grande Depressão. The Trouble I’ve Seen foi um sucesso.  

Dois anos depois, quando estava de férias com a mãe em Key West, conheceu Hemingway, com quem viveria durante cerca de oito anos – foi o segundo casamento dela e o terceiro dele. A rutura deu-se com uma discussão no hotel Dorchester, em Londres, quando ela teve a nítida noção de que ele era «um perfeito egoísta» e «um mentiroso». E escreveu à mãe, que aliás a tinha aconselhado a não se casar com o escritor: «Nunca mais quero ouvir o nome dele; o passado está morto e tornou-se feio». E de facto ficava furiosa quando lhe falavam dele. Segundo um biógrafo de Hemingway, «o ódio que ele lhe tinha era uma coisa horrível de se ver».

Questionada muitos anos mais tarde sobre o que tinha sentido quando soube da morte dele, Martha respondeu com uma palavra: «Nada».

Nem uma gota entornada

Gellhorn ainda voltaria a casar, mas revelaria a um amigo que os anos em que se sentira mais solitária foram precisamente aqueles em que teve marido. 

Em 1949 adotou um filho, um órfão italiano. Devido às suas viagens constantes, acabaria por descurar a educação do jovem, o que lhe provocava problemas de consciência.

Durante muito tempo queixava-se de a sua obra não ter a visibilidade (e os elogios) que merecia, mas nos últimos anos de vida o bem relacionado Bill Bufford, editor da Granta, ajudou a recuperar e divulgar o seu nome, fazendo dela o epicentro de um pequeno círculo literário.

Aos 80 anos foi violada no Quénia, um episódio de que falava sem dramatismo, mas que pode ter contribuído para a sua visão desencantada do sexo. Em 1990, com 81 anos, empenhada em denunciar as injustiças do mundo, ainda entrou clandestinamente no Panamá para relatar a invasão das tropas americanas. Fumadora inveterada, e apreciadora de uísque, a sua saúde deteriorou-se e ficou quase cega. Sem a alegria e a jovialidade que sempre a caracterizara, optou por tomar um comprimido para acabar com a vida em 1998.

É curioso que, depois de terem sobrevivido a tantos perigos, quer Martha Gellhorn quer Hemingway tenham optado pelo suicídio. E como terminou o episódio do avião na China em 1941? «Fechei os olhos porque pensei que preferia não ver uma das asas a separar-se da fuselagem. O avião, quando já estava perto do chão, começou a subir lentamente sem perder as asas. Recuperámos o que deveria ser a altura normal de voo, embora um voo da CNAC nada tivesse de normal, e o avião prosseguiu em estilo borboleta. O C. R. sorriu de felicidade. – Não perdi nem uma gota – disse ele».

Se fosse Hemingway a relatar o episódio, deveríamos desconfiar da proeza. Mas vindo de quem vem, podemos acreditar piamente. Martha Gellhorn podia ter um péssimo feitio, mas era incapaz de mentir.