E se bem o disse melhor o fez, apresentando a demissão ao então Presidente Jorge Sampaio, que não teve outro remédio.
Aliviado, Guterres devolveu com juros de mora a ‘prenda’ de Sampaio, quando este o informou de supetão, à revelia das estruturas do PS, ter decidido avançar para Belém, facto que deixou Guterres «absolutamente à rasca» – como Sampaio revelou, descaridosamente, a páginas tantas da sua biografia política.
As biografias são, por vezes, reveladoras. Foi também o caso da de Guterres, ao saber-se que tencionava indicar José Sócrates para lhe suceder na chefia do Governo caso Sampaio preferisse não convocar eleições – hipótese que ilustra mal a sua intuição política…
Libertado do pântano pelo seu pé, Guterres sentiu que o país era um espartilho, era pequeno demais para as suas ambições, e voltou-se para fora, culminando com a eleição para secretário-geral das Nações Unidas.
Antes dele, Durão Barroso ocupara durante uma década a cadeira de presidente da Comissão Europeia, resistindo a não poucos detratores.
Em ambos os casos foi-lhes reconhecido mérito intrínseco, embora houvesse ainda algumas boas almas que teimavam em confundir os ‘golpes de asa’ com a ‘excelência’ da diplomacia portuguesa, algo menos mensurável.
Guterres encontrou na ONU um ‘trono dourado’ em fim de carreira, que preferiu à hipótese – várias vezes falada e, diga-se em abono da verdade, até temida – de se candidatar a Presidente da República,
Afastado da ‘choldra torpe’ (para citar o inesquecível Eça), Guterres assumiu um dos lugares planetários de maior visibilidade mediática, cuja influência repousa, fundamentalmente, no uso da palavra – que, aliás, o ex-primeiro-ministro maneja com apreciável destreza.
Fê-lo num contexto internacional complexo, mas com a experiência acumulada de uma década como alto comissário das Nações Unidas para os refugiados.
Seria de esperar, por isso, que, chegado ao topo da ONU, elegesse a causa dos refugiados como prioridade absoluta – em particular quando se regista, no mesmo continente onde tem o ‘bureau’, um dos mais impressionantes êxodos contemporâneos.
Que se saiba, mais de 3,6 milhões de venezuelanos desesperados escolheram a fuga desordenada para países vizinhos.
Perante tão grave crise humanitária, em Portugal apenas o PCP (e o Bloco, quando calha…) finge não perceber as consequências catastróficas de uma situação social e política explosiva, provocada por um ditador, herdeiro de Chávez por ‘inspiração’ mediúnica.
A Venezuela, dantes próspera, está lançada numa pungente miséria, onde tudo falta, mas com o poder ‘blindado’ por ‘conselheiros’ cubanos e russos, cumpliciados com militares, que controlam os centros nevrálgicos e asfixiam os poucos media independentes que sobram.
Apesar desta realidade dramática quase à porta, que a própria ONU reconheceu estar «quase no nível de fluxo de refugiados no Mediterrâneo», Guterres entendeu privilegiar «como avô, o combate às alterações climáticas», considerando-a «a batalha da minha vida».
Digamos, sem rodeios, que é uma batalha cómoda, de alcatifa, muito mais ‘politicamente correta’ do que envolver-se a fundo no desafio dos refugiados, vítimas de diferentes tiranias.
Com a Venezuela mergulhada no caos, Guterres aceitou falar à imprensa da sua «preocupação», oferecendo os «bons ofícios» às partes em conflito para ajudar a encontrar uma solução política para a crise.
Fê-lo, porém, sem a energia e o verbo assertivo que a situação de emergência exigiria, confinando-se à linguagem diplomática, polida e redonda, e sem mostrar vontade de pôr a ONU a liderar o processo.
Recorde-se que a Venezuela também é habitada por meio milhão de portugueses e lusodescendentes, vítimas do mesmo descalabro, vivendo-o por dentro e sentindo na pele todas as agruras e incertezas.
Após demorada apatia, Portugal foi um dos 50 países que reconheceram o autoproclamado Presidente venezuelano, Juan Guaidó, sacudindo a indiferença dos principais media.
Quando seria expectável que Guterres engrossasse a voz e abraçasse a causa dos refugiados, como a ‘mãe de todas as batalhas’, ficámos a saber, pelos ecos da sua passagem pelas ilhas Fiji, que o seu desígnio, enquanto avô, é a «batalha climática».
E qual será o do secretário-geral das Nações Unidas? A Terra não pode esperar. E os milhões de refugiados, podem?…