Marcelo e o sapo

A direita zangou-se com Marcelo Rebelo de Sousa por causa dos comentários do professor no rescaldo das eleições europeias.

Não devia. O que Marcelo disse não foram mais do que evidências. 

Se a direita tem motivos para estar zangada com Marcelo, não é pelo Presidente atacar agora o eleitorado de centro-direita que ficou em casa, mas por andar a traí-la desde há anos, mal tomou posse, amparando o Governo de António Costa e do genial Mário Centeno no colo e ajudando a ‘geringonça’ sempre que lhe apareceu um grão a emperrar a engrenagem. Ou melhor, mesmo antes disso. 
Mas pode um Presidente dizer o que Marcelo disse? Não, não pode. 
A não ser que seja Marcelo. Ele pode.
Marcelo Rebelo de Sousa não é um Presidente da República à medida da Constituição e do regime assente nos três pilares da separação de poderes.
Marcelo é igual a si próprio, único, emotivo, impulsivo, afetuoso, incontrolável e incontrolado, tolerante e solidário, populista, generoso, oportunista, altruísta e, simultaneamente, egoísta.
Constitucionalista, para Marcelo, o juramento da Constituição é o compromisso com a sua leitura da Lei Fundamental. E o professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa usa tal condição para justificar o que a Constituição não permite a um Presidente, que deve ser neutro nas querelas político-partidárias e sobretudo isento nos combates eleitorais.
Marcelo não consegue sê-lo. Porque tudo gira à sua volta e o seu pensamento estratégico não o deixa parar de pensar em si próprio: nos seus próximos passos, nos seus próximos desafios. Em Marcelo tudo é pensadamente espontâneo, trabalhosamente genuíno.

Está lá agora Marcelo preocupado com a crise do centro-direita, com a polarização da direita ou com a falta de comunicação e impossibilidade de conciliação entre os dois partidos tradicionalmente à direita do PS?!
Cá nada, como dizem os madeirenses. Marcelo está única e exclusivamente preocupado consigo próprio, com a reeleição e com o papel reservado ao Presidente da República no quadro político emergente das próximas legislativas.
Marcelo não era ainda Presidente, ou sequer candidato presidencial assumido, e já castigava dominicalmente o mais que podia o Governo de Pedro Passos Coelho e de Paulo Portas.
Dominicalmente, zurzia forte e feio no primeiro-ministro e no seu Executivo e na austeridade que salvou o país da bancarrota.
Na sua caminhada para a candidatura a Belém, Marcelo sabia que a sua popularidade dependia de dizer ao povo o que o povo queria ouvir – ou seja, tudo menos apoiar os sacrifícios que se impunham pelo agrilhoamento da troika.

Passos não tinha alternativa. Marcelo tinha, mas nunca quis saber.
Se Passos, ainda assim, ganhou as legislativas de 2015 e Cavaco Silva exigiu compromisso escrito e para a legislatura entre as forças de esquerda que montaram a ‘geringonça’ e inviabilizaram um Governo de centro-direita – com António Costa à frente e Catarina Martins e Jerónimo de Sousa a reboque –, Marcelo desde logo deixou claro que as esquerdas podiam contar com ele para haver estabilidade política, agora e no futuro, e nem sequer seria preciso acordo escrito algum. Ele, Marcelo, seria o fiel da balança.
Que é o que Marcelo quer continuar a ser. Não um árbitro, e muito menos um espectador, mas um protagonista fulcral no centro de todas as decisões.

Daí o arremesso de Marcelo contra o resultado das europeias – ou melhor, para o que pode significar a sua projeção para as próximas legislativas.
Com uma maioria absoluta do PS em outubro ou com um Parlamento que permita aos socialistas garantirem a estabilidade governativa em diversas frentes, e sem necessidade da intervenção providencial de Belém, o Presidente pode ficar reduzido ao papel que a Constituição lhe confere – quase nulo num cenário de estabilidade parlamentar.
E, nesse cenário, até Costa deverá declarar o apoio convicto à reeleição de Marcelo, que pode garantidamente contar com o voto da esmagadora maioria dos socialistas. 
Nessa altura, será a vez dos eleitores do centro-direita engolirem o sapo – como os comunistas o fizeram com Mário Soares em 1986 – para votarem também no professor. Ou, em alternativa, voltarem a ficar em casa, dando razão ao comentador que antecipa uma profunda e longa crise do centro-direita para «os próximos anos». Ele próprio, que deu um enorme contributo para ela. E dela beneficiou.