Platini. ‘Em Portugal não gostam de mim? Pois… marquei-vos um golo’

” Para mim, atualmente, Ronaldo é o melhor”

PARIS – Desde 2015 que Michel Platini não surgia na imprensa, tanto francesa como internacional. Agora, em Paris, a pouco metros da Torre Eiffel e do Trocadero, recebeu cinco jornalistas de cinco países diferentes para revelar aquilo que chamou de sua «aventura judicial». Ainda com um profundo sentido de injustiça em relação à sanção da FIFA de o suspender durante quatro anos de toda a atividade que tivesse a ver com o futebol, Platini está decidido a que este tipo de procedimentos não se repitam: «Não há o direito de impedir uma pessoa de trabalhar. Sempre trabalhei no futebol, estou agora sujeito, até outubro, quando termina o meu castigo, a fazer o quê? Por isso também irei interpor contra a FIFA um processo no Tribunal dos Direitos Humanos, em Estrasburgo. Porque o direito ao trabalho tem de ser inalienável. Este poder sem limites da FIFA tem de ter fronteiras. A FIFA não pode impedir quem quer que seja de trabalhar».

A conversa foi longa, espalhou-se por toda a manhã, início da tarde. Uma manhã «pluviomerdenta», diria o sempre incontido Alexandre O’Neill. Paris espreita pela janela, mas o céu parece torto de nuvens. Cogumelos de guarda-chuvas juncam os passeios, o trânsito já se faz ouvir através de claxons irritados. «Les embouteillages»: uma praga. Por isso o encontro foi agendado para muito, muito cedo. «Por mim, queria mesmo era ir almoçar convosco e conversarmos à mesa. Seria mais descontraído. Mais divertido. Mas vou ter um almoço na UNESCO. Convocaram-me, não posso faltar. Afinal, só estarei em Paris dois dias. Depois sigo para o meu sossego».

Platini é natural de Joeuf, nas margens do Mosela, região do nordeste francês, perto de Nancy, onde começou a sua carreira impressionante de jogador de futebol. É em momentos como este que revela, de novo, a sua faceta de animal político que vimos muitas vezes em ação, sobretudo na fase em que tomou em mãos a responsabilidade do Comité de Organização do Mundial de 1998, em França, e mais tarde na sua cavalgada até à presidência da UEFA.

Se não é indiscrição, e até é, que vais fazer juntamente com a UNESCO? Algum projeto?

Não. Vou almoçar…

[C’est vraiment son style! Gosta de brincar. Toujours rigollo. Ou finalmente de volta a uma certa alegria de viver que há muito parecia arredada dos seus dias distantes. Por mais que tenha insistido com ele nos últimos dois anos, nunca quis dar uma entrevista. Foi adiando. Conheço-o há muitos, muitos anos. Passámos a ter uma convivência mais próxima a partir de janeiro de 1992 quando, em Gotemburgo, lhe fiz uma grande entrevista, a meias com o meu camarada José Vidal. Era selecionador da França e tinha conseguido algo de absolutamente inédito: apurar a equipa para a fase final do Campeonato da Europa só com vitórias. Depois falámos muitas e muitas vezes. «Raconte moi des choses, le portugais», solta bem disposto.

Falamos um pouco de Chalana, do Fernando que está a perder a memória de uma forma angustiante.]

Não me digas. Mas ele é da minha idade, não é?

Muito mais novo! É de 1959, fez sessenta há pouco.

Ah! Poupa-me. Três anos mais novo. Que jogador, esse pequenino! O que ele fez contra nós no Europeu de 84 foi impressionante. Que maneira de levar a bola, de fintar. Incrível. Se puderes manda-lhe um abraço…

Mandar mando, mas…

Bela equipa, bela equipa. Dois centrais fortes. Do FC Porto, não eram?

Sim, Eurico e Lima Pereira.

E Jordão. Surgia e fazia um golo. Contra nós, primeiro de cabeça. Depois aquele ‘lob’. A bola a bater no chão e a voar por cima do Bats. Nunca vi! Nunca tinha visto e nunca mais vi!

Foi um belo jogo, não foi?

Jogo estranho. Jogo estranho. De repente podíamos estar a ganhar calmamente. Mas sem problemas. Podíamos ter feito 3 ou 4-0. Sinceramente. O Bento voava para todo o lado. Um voador. E, depois, não sei como ganhámos. Se calhar, houve mesmo um momento em que devíamos ter perdido. Muito especial Muito especial. um sufoco.

Bem diferente do da final do Europeu de 2016, em St. Denis.

Bem, esse não vivi.

Não te interessou? A vitória de Portugal não te incomodou nem um pouco?

[Abre os braços a toda a largura antes de os cruzar em cima da barriguinha proeminente que já exibia até quando jogava. Então dizia: «Não tenho de correr. Quem vai correr é a bola»] Sabes que já não vejo jogos como adepto. Se me perguntares se quero que a França ganhe, digo que sim… se merecer. Depois da experiência que tive nos últimos anos, o futebol tornou-se para mim muito distante. Não sou adepto de nada. Nem da França. Não vejo os jogos como adepto. Não vi a final de 2016 como adepto. Portugal ganhou, esteve melhor, mereceu, parabéns! Nada mais!

«Não sei o porquê dessa antipatia»

Não sei qual a verdadeira razão porque existe, em Portugal, uma antipatia feroz por Michel Platini. A verdade é que ela existe e quando pergunto o motivo a alguém, geralmente recebo em troca: esse gajo nunca gostou de nós. Não é verdade. Também tive muitas vezes com Platini em Lisboa e sei como eles gosta de visitar a cidade. Além de que é o que se chama um bom garfo e não perdia a possibilidade de ir aos lugares onde melhor se come.

Sabes que, basicamente, em Portugal as pessoas não gostam muito de ti?

Porquê? Por que marquei um golo a Portugal na meia-final do Campeonato da Europa. Que havia de fazer? Falhar? Não podem culpar-me por isso, pois não?

Na minha opinião não, mas há essa antipatia muito popular em relação a ti. Um facto.

Percebo até certo ponto por causa do que se passou com o FC Porto. Era presidente da UEFA e calhou-me surgir o caso do Apito Dourado e do envolvimento do clube nessa questão. Mas era um assunto que nem sequer me dizia respeito. Era da competência do departamento jurídico. Não me meti em nada. Posso, quanto muito, perceber que haja quem possa sentir o contrário.

É verdade que nunca te ouvi dizer mal de Portugal ou do futebol português.

Só tenho a dizer bem. Sempre adorei ir a Portugal. Mais: passei lá um tempo inesquecível durante o Europeu de 2004. Viajei por todo o país e conheci até cidades mais pequenas às quais nunca tinha tido a oportunidade de ir, como Leiria ou Aveiro. Foi um mês extraordinário!

É verdade que consideras o Ronaldo o melhor jogador do mundo?

Completamente! Para mim, atualmente, Ronaldo é o melhor. Claro que tem havido a rivalidade com o Messi, este ano se calhar o Messi tem alguma vantagem na corrida à Bola de Ouro, mas eis outro assunto do qual só quero distância. Não sou do France Football nem sou da FIFA. E, já agora, acrescento que acho essa pergunta de quem é o melhor do mundo um bocado estúpida. Cada um terá a sua opinião. Jogadores não são comparáveis, a matéria é absolutamente subjetiva. Portanto, pergunta estúpida. Ah! E se me perguntares quem era o melhor do mundo há 40 anos, se calhar respondia que era eu.

Sinto-te aliviado. Pode usar-se a expressão?

Sinto-me bem. Ao fim de todo este tempo, vejo a vida de outra forma. Vivo tranquilo, gosto da minha vida, estou à beira de ficar livre de um castigo injusto e estúpido que me deixou anos longe do futebol. Mas, atenção, não esqueço o que me fizeram. Isso não! E vou à procura dos culpados.

Então. De que maneira?

Para já, pedi aos meus advogados que avançassem com quatro processos, um nos tribunais criminais franceses contra desconhecidos por associação criminosa, outra no Tribunal dos Direitos Humanos, em Estrasburgo, por impedimento do Direito ao Trabalho, dois na Suíça por difamação, sendo um contra André Bantel, porta-voz do Comité de Ética da FIFA e outro para saber as ligações entre a FIFA e André Marti, do Ministério Público Suíço.

Mas como explicas a acusação que te foi feita e o castigo que sofreste? Não surgiu do nada.

Fui punido por algo que não faz qualquer sentido. Limitei-me a tentar que Sepp Blatter me pagasse um milhão de francos suíços que a FIFA, da qual ele era presidente, me devia de vários trabalhos para os quais fui contratado. A partir daí foi-me levantado um processo pela Comissão de Ética e, em seguida, nos tribunais civis. O meu grande erro foi não ter respondido, precisamente, junto dos tribunais civis. Embora isso, na altura, me estivesse vedado pelos estatutos. Devia tê-lo feito. Porque a perseguição que empreenderam contra mim foi terrível. A verdade é que a Suíça é muito pequena e eles formam todos uma família. Eles e muita gente da imprensa. Pretendo saber exatamente o papel que cada um deles teve na tentativa de destruição da minha imagem.

Mas, na tua opinião, Blatter, que também já foi entretanto banido, foi corrupto?

Não. Sinceramente, não acho. Nunca tive nada contra ele. Penso que, até certa altura, cumpriu bem o cargo. Falhou na incapacidade de perceber que já não tinha condições para continuar. Em 2010 afirmou que seria a sua última candidatura; em 2013 veio pedir-me apoio para uma nova. Respondi-lhe que não iria apoiá-lo. Que não fazia sentido depois de ter anunciado a sua retirada. E disse-lhe que logo a seguir a ele ter afirmado que não voltava a candidatar-se, resolvi avançar com a minha candidatura. Ficou furioso: chegou a dar uma entrevista em que clarificou – ‘Todos menos Platini!’ Aí percebi que estava a entrar num conflito, a despeito de ter o apoio de 150 federações. Mas, atenção: Blatter não foi corrupto. Pagou pela corrupção das confederações americanas.

E em relação ao teu sucessor na UEFA, Gianni Infantino. Achas que também esteve por detrás do processo que te moveram?

Não posso afirmá-lo. Não sei.

Sentes que ele queria ver-te fora da candidatura à FIFA? Queria ver-te banido?

Que posso dizer em relação a isso? Infantino foi meu secretário-geral enquanto fui presidente da UEFA. Depois de eu ser suspenso, veio com Angel Villar, ao meu gabinete, que ainda usava porque tinha interposto recurso e, portanto, me considerava em funções, e disse-me que seria candidato à presidência da FIFA. 

E tu?

Fiquei muito surpreendido. Muito mesmo!

Que lhe disseste?

Disse-lhe que não era um candidato credível. De maneira nenhuma!

Porquê? 

Ora, porque não era ninguém no futebol e ninguém o conhecia. Foi um secretário-geral e nada mais. Que tinha ele feito para poder sentir que merecia alguma vez ser presidente de uma organização com a importância e o poder da FIFA? Nada. Não era ninguém.

E agora, ao longo do seu mandato, mudaste de ideias?

A que propósito?! Não. Não é um presidente credível, continua a não ser nada credível para o cargo! Que fez ele até agora? Dizes-me? Que tem feito ele no cargo que ocupa a favor do futebol?

«Infantino vomitava sobre a FIFA!»

Sentes-te traído por ele?

Não me sinto traído porque não éramos amigos. Trabalhámos juntos durante vários anos. Sinto-me, quando muito, desiludido.

Então? Motivo principal?

Quando trabalhávamos na UEFA, Infantino dizia o pior da FIFA e de todos os que lá trabalhavam. Vomitava autenticamente sobre a FIFA! E a que propósito quis o cargo? Logo na altura em que soube que eu não poderia ser candidato? Para mim, é estranho e custa-me a perceber o sentido das suas acções.

Achas que faz parte do tal ‘complot’ que organizaram contra ti?

Não vou dizer isso. Vou dizer que, depois de tudo o que fiz por ele e pela vida dele, seria muito mau que ele fizesse algo contra mim. Terrível, mesmo. E, repito, não pode ser presidente da FIFA. Não tem credibilidade!

Mas quem não te queria como presidente da FIFA, afinal?

[Volta a sorrir e a abrir os braços no seu jeito peculiar. Vê-se que é uma pergunta que lhe agrada. Não se apressa a responder].

Esse é o motivo pelo qual avancei com um processo contra desconhecidos por associação criminosa. Quero saber quem esteve por detrás de tudo isto. É que, no momento em que anunciei a minha candidatura, tinha 150 federações a apoiar-me. De repente, por causa do tal milhão de francos suíços que Sepp Blatter me devia, por funções que prestei à FIFA, surge a denúncia ao Comité de Ética, cujo porta-voz também processei por difamação. A partir da denúncia, num instante, o processo, a suspensão. E a recusa em aceitar o recurso que fiz apresentei ao CAS [Court of Arbitration for Sport]. 

São estes os grandes responsáveis pelo teu castigo?

Isso é evidente. Não me queriam como presidente da FIFA e tiraram-me da corrida. Repara que é gente que se conhece bem. São todos, posso dizê-lo, uma grande família num país pequeno como é a Suíça. E tem relações muito fortes com muita gente poderosa na imprensa. O caso foi construído e resolvido num instante. A partir da denúncia, morri!

E agora, quanto tempo esperas que os processos que colocaste vão demorar?

[Ri-se bem disposto. Com o brilho trocista no olhar. Intenso]

No meu caso não demorou tempo nenhum. Foi de um dia para o outro. Agora, como vou saber? A justiça tem coisas que a gente não compreende facilmente.

«A Liga das Nações foi ideia minha!»

Tens a sensação de que fizeste coisas importantes durante a tua presidência da UEFA?

Tenho sim. Queres um exemplo? A Liga das Nações cuja fase final arranca esta semana em Portugal. Ideia minha, uma forma de as melhores seleções fazerem mais jogos entre elas sob o princípio inolvidável no futebol que mais competição traz consigo mais dinheiro. E, francamente, já ninguém está mais com paciência para jogos amigáveis, sobretudo contra opositores fraquinhos, como era hábito acontecer. Depois alguém fez passar que a ideia tinha sido de outros, mas a verdade é que foi minha e que fui eu quem lançou as bases para que ela hoje esteja a funcionar. Roubaram-ma.

Já em relação ao VAR não foste tão direto. Mas apoiaste.

E agora penso que foi um erro implantá-lo desta forma. Vejam só o que se passou na final da Liga dos Campeões.

O penálti?

Que não foi penálti! E logo nos primeiros segundos!

O árbitro não teve dúvidas.

Skomina enganou-se. Não foi penálti. Temos de uma vez por todas de perceber o movimento dos jogadores e não obrigá-los a viver escravos de movimentos que são impossíveis de impedir. Aquilo não é penálti e ponto.

E agora?

Agora vamos ter de escolher para que serve verdadeiramente o VAR. Não pode servir para que os árbitros sejam protegidos por tudo e por nada. Os árbitros é que têm de estar ao serviço do futebol, não o contrário. Não podemos estar a inventar tudo o que é possível para estar ao serviço dos árbitros. Se não estamos a destruir o jogo. Já basta a confusão criada com a espera para validação ou anulação dos golos. É deprimente. O público já nem comemora. Está preso ao que alguém vê pela televisão. O futebol não pode perder a sua vertente de festa e de espontaneidade. Se não, não é mais futebol. Ajudar os árbitros, sim. Colocar o futebol ao serviço dos árbitros, não!

Fair-play financeiro?

Isso! Mais uma medida que apoiei fortemente e me parece extremamente útil para que os clubes sejam obrigados a explicar determinado número de gastos incompreensíveis. E obrigados a parar com eles.

A tua suspensão termina em Outubro. Que vais fazer?

Vou sentir-me livre. Nestes anos todos nem jogos tenho ido ver. Fui uma vez a Turim, outra a Nancy, pouco mais. Nem posso sequer, por via do castigo, ser convidado pelas entidades oficiais. Fiquei preso mas do lado de fora. Do lado de fora daquilo a que dediquei toda a minha vida. Será um momento muito feliz, sem dúvida, quando este pesadelo acabar.

Mas vais regressar ao futebol?

Não sei. Tenho ideias. Mas ainda não sei como pôr algumas em prática. Por isso quero esclarecer de vez tudo o que aconteceu e, assim sendo, avancei com os processos. Quero respostas e quero que determinadas pessoas venham a público dar respostas para perceber de uma vez por todas a forma como o caso se desenvolveu. A UEFA foi vítima de um golpe de estado durante a minha presidência. Foi isso que sucedeu. Um golpe de estado que tinha um objectivo muito concreto: tirar-me da possível e mais do que provável presidência da FIFA. E não se esqueçam de que outros nomes que surgiram como possíveis candidatos ao cargo também se viram, de uma forma ou de outra, arrastados para processos. Nem Blatter, que confessou numa entrevista, que queria ficar no cargo de presidente da FIFA até à morte, escapou. E isto foi organizado e bem organizado. Espero que a minha decisão de avançar para os tribunais ajude a esclarecer tudo.

Como, por exemplo, a tua célebre reunião com Nicolás Sarkozy onde esteve presente o emir do Qatar? Também te valeu acusações duras.

E, no entanto, tudo é simples e claro. Eu pedi a Sarkozy uma reunião. Queria transmitir-lhe de que forma iria votar para as eleições das organizações dos mundiais seguintes. Era minha obrigação. Estava a votar representando a França, não o Michel Platini. Defendi que nunca houvera um Mundial num país de Leste e igualmente num país árabe. Os meus votos basearam-se nesta lógica e fui explicar-lho diretamente ao Eliseu. Quando cheguei, estava presente o emir do Qatar. Não por indicação minha, não por ideia minha, não por proposta minha. Era convidado de Sarkozy. Do presidente da França. Por isso, que fique claro. A sua presença até foi incómoda para mim tendo em vista o que ia falar com Sarkozy. Mas o convidado era dele. E eu também um convidado. Tudo o que se escreveu depois sobre a matéria e a influência que teria tido na minha decisão é uma data de disparates. As decisões estavam tomadas muito antes disso. Limitei-me a ir dar parte delas como era minha obrigação.

Bem, esperemos uma nova intervenção para breve… mal saibas algo dos teus processos em curso.

Salut, le portugais! Vamos falando. E manda o meu abraço para o Chalana!

Se puder. Para a próxima se quiseres algo de Portugal avisa.

Quero pois… Claro que sim: bacalau!

Certo. Mas com agá.