“Fazia gazeta montes de vezes. Aquilo fazia-me tanta confusão que ficava semanas sem pôr os pés na escola”. Passados 80 anos, António ainda sente alguma revolta ao recordar os tempos da terceira classe, feita em Santarém. A violência era constante e o nível de exigência era mais elevado. Apesar de tudo, acha que os alunos saíam da escola mais preparados e com mais conhecimentos do que hoje.
Começou a primária aos 7 anos, no colégio Garrett, na zona da Almirante Reis, em Lisboa. “Não sei se era por falta de espaço ou de professores, mas os alunos do primeiro ano tinham aulas com os do terceiro e os do segundo com os do quarto. Na altura, a tabuada e os verbos eram decorados em voz alta, numa lengalenga. Por isso, os miúdos do primeiro ano começavam logo a aprender essas coisas. A minha irmã mais velha chegou mesmo a saltar do segundo para o quarto ano”, contou ao i.
Enquanto esteve em Lisboa, os tempos de escola foram muito tranquilos. O pior surgiu após a ida para Santarém. “O meu pai era caixeiro-viajante e, por isso, mudávamos de casa muitas vezes. Fui fazer a terceira classe a Santarém. Nunca mais me esqueci do nome do professor, o senhor Ritto. Era um matulão, com cabelo rapado na nuca à nazi”, recorda António, de 88 anos. Este professor levava a violência ao extremo… Mas só com alguns: “A turma estava dividida em classes. À frente, estavam os filhos do lavradores – lembro-me até de o cocheiro levar um deles à escola; Na fila do meio, estavam os da classe média, onde eu me incluía; Lá atrás, ficava a ralé, as pessoas mais pobres, descalços, com calças com fundilhos. Esses é que apanhavam muito. Valia tudo: murros, puxões, pontapés. A escola pública era horrível. Havia a ideia de que a violência fazia parte da educação”.
António andou na escola no tempo da Mocidade Portuguesa. “Aos sábados tínhamos instrução, tínhamos de ir para a escola marchar. Eu tinha uma farda que tinha sido dada pelo meu tio, que pertencia ao regime salazarista. Por isso, era o chefe de quina, que comandava o grupo”, recorda.
Assim que acabou a quarta classe, António foi trabalhar. Mas acabou por regressar à escola mais tarde, ao ensino comercial. Muito mais tarde, já com filhos crescidos, fez o antigo quinto ano dos liceus, o equivalente ao nono ano atual. Ou melhor, não chegou a fazer por uma disciplina – “não atinava com o francês…”. Hoje, reformado, com netos casados e outros ainda na escola, percebe que o ensino não tem nada a ver com o que era na sua altura: “Eu era bom a Matemática, mas hoje olho para os problemas que a minha neta mais nova resolve e não percebo nada. De qualquer forma, acho que saíamos da escola a saber mais. Aprendíamos mais coisas”.
Isabel (nome fictício) tem idade para ser filha de António, mas a verdade é que a sua opinião não diverge muito da do octogenário: “Eu sempre fui contra a escola teórica. Tem de ser prática. Acho que o ensino está muito parecido com o que era. Se calhar até é um bocadinho pior, porque são lecionadas mais coisas, mas com menos profundidade”.
Fez a primária em Lisboa, num colégio particular só para raparigas. Mesmo quando passou para o ciclo preparatório (o equivalente ao 5.º e 6.º ano), numa escola pública mista, nunca presenciou cenas de violência. “Eu apanhei o pré e o pós 25 de Abril. Mesmo nos anos antes da revolução, tive a sorte de andar numa escola privada, onde não acontecia nada do que era descrito por outras pessoas da minha geração. Nunca vi alunos levarem reguadas, serem atados à cadeira, nada disso. No máximo, se nos portássemos mal, tínhamos de passar o intervalo na sala de aula a copiar uma frase 100 vezes”, recorda a historiadora de 56 anos.
A seguir ao 25 de Abril, a grande mudança partiu dos alunos. “O maior choque foi a vinda dos retornados. Eram muito mais livres e descontraídos do que nós. Fumavam e iam de calções para a escola, o que antes era impensável. Nós começámos a imitá-los e os professores também foram ficando cada vez mais tolerantes”, conta ao i.
No fundo, todos os miúdos eram iguais. Só tinham formas de estar diferentes. Para Isabel, mãe de quatro, não há diferenças mesmo entre as crianças dos anos 70 e as de hoje. “É tudo a mesma coisa, adaptado aos tempos em que vivemos. Hoje tentam mandar mensagem por telemóveis a meio da aula, nós passávamos os bilhetinhos. Guardam as mensagens que gostam mais, nós guardávamos os bilhetinhos mais importantes no estojo. No recreio era a mesma coisa: eram formados grupos e gozavam uns com os outros. Claro que, se calhar, hoje em dia, há mais exposição e informação disponível [com as redes sociais] e por isso ataca-se mais”.
No final dos anos 80 e no princípio da década de 90, 50 anos depois de António ter andado na escola, seria de esperar que já não houvesse violência nas escolas. Mas tudo dependia do sítio. Maria, de 29 anos, andou num colégio em Cascais, onde reinava a harmonia. “Era um colégio de freiras e só vi uma vez uma irmã a dar um ‘calduço’ a um rapaz do ano antes do meu. De resto, tudo normal”, diz ao i.
“Os nossos recreios eram passados a jogar ao berlinde, a brincar com os tazos e a fazer as coreografias das músicas das Spice Girls. Nas aulas, a relação com os professores era muito próxima e ajudavam-nos com tudo. O único problema era a carga horária a partir do 5.º ano: começávamos às 08h30 e saíamos às 17h20. Acho que é demasiado puxado. Era de tal forma que tinha sempre a mochila cheia de livros e ficava cheia de dores nas costas. Nessa altura, eram passados um exagero de trabalhos de casa. Na primária é que era bom: tínhamos poucos TPC e, ao final da tarde, ainda dava para ligar para o programa do Hugo [programa infantil que dava na RTP2]”, brinca.
Mas se Maria tinha uma vida tranquila na escola, José Manuel (nome fictício) tinha uma experiência muito diferente. Na escola que frequentava, numa zona mais rural do distrito de Lisboa, era comum os miúdos serem agredidos pelos professores. “Eu só apanhei uma vez. Na altura, a escola primária dava o leite com chocolate ao pequeno-almoço e nós começámos a sujar as raparigas. Apanhámos todos reguadas nas mãos”, conta ao i o jardineiro de 37 anos. E isto acontecia mesmo se não tivessem feito nada de mal: “Bastava não saber o resultado de uma conta que apanhávamos logo”.
Isto só acontecia na escola primária. “A partir do momento em que fui para o liceu, nunca mais houve nada disto. Os castigos eram recados na caderneta para os pais, ir para a rua, as coisas mais comuns que julgo que ainda hoje se fazem”.
Tal como António, José Manuel acha que o ensino da sua altura era mais exigente do que o atual. “Hoje em dia, do que me apercebo, não se chumba ninguém. Na minha altura, se fosse preciso chumbava-se na primária”, diz ao i. Apesar de tudo, recorda esses tempos com saudade: “Éramos miúdos, estudávamos e brincávamos. A vida era só aquilo”.