Sermos pais dos nossos pais

Ainda são algumas as famílias que fazem tudo ao seu alcance para proporcionar aos seus familiares doentes o melhor acompanhamento e tratamento. Na prática, são pais dos seus pais no final das suas vidas. Isto não é para todos. Implica tempo, meios materiais e financeiros, paciência, apoio e compreensão do núcleo familiar principal, disponibilidade física…

«É-se mais bem tratado fiscalmente por ter um cão ou um gato do que por ter um filho».

Miguel Sousa Tavares

Em conversa recente com um amigo, este disse-me que um dos seus filhos lhe tinha enviado um texto sobre sermos pais dos nossos pais. 

Isto a propósito do que tantos filhos(as) e famílias estão a sentir na pele e a vivenciar nos últimos anos, com o aumento do número de pessoas com doenças associadas à demência e outras degenerativas, como o Alzheimer e o Parkinson. 

Esta é uma matéria que tem estado fora dos debates públicos e mediáticos, relativamente ao que tem vindo a ‘acontecer’ a milhares de famílias portuguesas, com impactos muito grandes nas vidas familiares, em particular em filhos e netos. Só quem tem essa nova condição, esse problema entre portas, na sua família, sobretudo com os seus pais, é que compreende o quanto é pertinente que nos ajustemos e preparemos para sermos pais dos nossos pais. 

Ouvir contar, ouvir falar, sentir teoricamente, é uma coisa. Sentir o dia a dia, cada segundo e minuto, das famílias atingidas por este tipo de doenças é uma coisa diferente. Muitíssimo diferente.

São muitas as famílias que em Portugal têm pais e avós com um diagnóstico grave de doenças de cariz neurológico e com um quadro de demência acentuado. Muitos com situações de grande debilidade e de dependência física e emocional. Completamente dependentes de tratamento e acompanhamento ao nível de cuidados paliativos. E também em muitos casos necessitando de cuidados continuados em permanência. 

Só quando nos batem à porta situações familiares com esta complexidade é que percebemos e conhecemos que infelizmente são cada vez mais os doentes com estes diagnósticos, e são cada vez mais as famílias que têm de se adaptar, que têm de acomodar novas rotinas, novas prioridades, novos hábitos, diferentes dependências, gerir novos problemas, lidar com diferentes emoções negativas, etc., etc.

Nem todas as famílias, filhos e netos, têm condições para alterar as suas vidas, as suas rotinas, alguns dos seus hábitos, assumirem novas e diferentes cadências familiares e gerirem tantos problemas, desilusões e emoções negativas. 

Bem como poucas famílias têm condições financeiras para proporcionar o melhor apoio aos seus pais e avós. Sendo certo, também, que existem algumas famílias que infelizmente o são apenas ‘formalmente’ e que num quadro de doenças com esta complexidade se limitam a fazer o que sempre fizeram durante a vida: picam o ponto familiar nos mínimos e deixam que outrem (em particular a saúde pública) trate dos seus familiares. 

Mas são ainda algumas as famílias que fazem tudo ao seu alcance para proporcionar aos seus familiares doentes o melhor acompanhamento e tratamento. Na prática, são pais dos seus pais no final das suas vidas.

Isto não é para todos. Implica tempo, meios materiais e financeiros, paciência, apoio e compreensão do núcleo familiar principal, disponibilidade física e mental permanente, dedicação, amor e carinho.

É muito difícil, sobretudo num tempo em que o individualismo e os focos da vida fora da família são tão grandes.

Recentemente, outro amigo dizia-me: «Nas últimas décadas, as famílias foram desvalorizadas, encolheram, os laços perderam-se, as relações e a proximidade diminuíram. Como é que vamos poder exigir aos membros das famílias que pouco viveram a lógica da família que a vivam de maneira diferente do que fizeram durante décadas?».

Ele tem razão. Uma coisa é certa: para sermos pais dos nossos pais, com tudo o que isso significa, temos de ter não só ‘animus’ mas conhecimento e proximidade grande. Temos de ter uma vivência e cumplicidade acumuladas ao longo da vida. Para podermos ser o que devemos ser: filhos e netos com a responsabilidade de fazer com carinho, anos e tempo, o acompanhamento e o apoio devidos a quem nunca nos faltou na vida. 

Porque essa de que o sangue é que conta, por si só é pouco. As famílias, de certa forma, são como os jardins – têm de ser cuidados em permanência. Com gosto, com proximidade. Com carinho. Com amor. E entreajuda, sobretudo nos maus momentos. Porque sermos pais dos nossos pais não é para todos.

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