Seiscentas caixas com livros a bordo de um navio no Tamisa

Na passada semana escrevi aqui sobre Aby Warburg, o heterodoxo historiador da arte alemão desaparecido há 90 anos. Além de uma importante obra publicada que totaliza cerca de 40 títulos, sobretudo em torno da arte italiana do Renascimento, Warburg deixou-nos o seu projeto incompleto de um atlas de imagens, Mnemosyne, que tem inspirado artistas e…

Na passada semana escrevi aqui sobre Aby Warburg, o heterodoxo historiador da arte alemão desaparecido há 90 anos. Além de uma importante obra publicada que totaliza cerca de 40 títulos, sobretudo em torno da arte italiana do Renascimento, Warburg deixou-nos o seu projeto incompleto de um atlas de imagens, Mnemosyne, que tem inspirado artistas e historiadores da arte. Mas o seu maior legado foi talvez a fabulosa ‘biblioteca para a ciência da cultura’ que fundou na sua Hamburgo natal.

A biografia de Warburg que Gombrich escreveu é justamente complementada por um ensaio sobre a história da biblioteca, da autoria de Fritz Saxl, que dirigiu a instituição enquanto o fundador esteve internado numa clínica na Suíça devido a distúrbios psiquiátricos e mais tarde após a morte deste.

Warburg tinha uma teoria interessante sobre a arrumação dos livros, a que chamava «a lei da boa vizinhança». «O livro que uma pessoa conhecia em muitos casos não era o livro de que precisava. O vizinho desconhecido na estante continha a informação vital, embora pelo título isso não se conseguisse adivinhar».

Em 1920 a biblioteca Warburg continha 20 mil volumes e, com as novas aquisições a chegarem a um ritmo diário (até porque, com a inflação na Alemanha, os dólares vindos do ramo da família na América se multiplicavam), a casa onde estava instalada começava a não chegar para as encomendas. «Não havia sala de palestras, nem sala de leitura para o crescente número de leitores, e nem sequer o mais engenhoso carpinteiro conseguiria inventar novos dispositivos para aumentar o espaço nas paredes», conta Fritz Saxl. «Do chão ao teto as paredes estavam cobertas de livros, a despensa tornou-se um armazém, pesadas estantes pendiam perigosamente sobre as portas, a sala de bilhar tinha sido transformada em escritório, no hall de entrada, nos patamares das escadas, na sala de estar da família – por toda a parte livros, livros, livros».

Para fazer face à situação, um novo edifício foi construído, aumentando a capacidade total para 120 mil volumes. Dotado de todas as condições, o espaço foi inaugurado em 1926, com a biblioteca entretanto já transformada em Instituto.
Em 1929, Warburg morria e menos de quatro anos depois os nazis chegavam ao poder. «Nos primeiros meses de 1933 tinha-se tornado claro que o nosso trabalho na Alemanha tinha chegado ao fim», descreve Saxl. Foi então que alguém sugeriu que o instituto prosseguisse a sua missão no estrangeiro. «A transferência do Instituto Warburg de Hamburgo para Londres foi um acontecimento invulgar. Um dia chegou ao Tamisa um navio transportando seiscentas caixas com livros mais estantes metálicas, secretárias de leitura, máquinas de encadernação, etc., etc.».

Não seria a última vez que este gigantesco acervo andaria em bolandas. Com o eclodir da II Guerra Mundial os livros voltariam a ser evacuados para um local seguro. Até que em 1958 se transferiram a título definitivo para um edifício da universidade de Londres em Woburn Square. Quem diria que uma pacata biblioteca de estudos culturais podia ter uma vida tão atribulada?