A Justiça de cócoras

Dois procuradores do Ministério Público (MP) com mais histórico no departamento responsável pela investigação da criminalidade mais complexa – o Departamento Central de Investigação e ação Penal (DCIAP) – estão de saída por não terem requerido a renovação das respetivas comissões de serviço.

Vítor Magalhães e João Valente estiveram na liderança dos inquéritos aos casos do assalto aos paióis de Tancos e da farsa da recuperação do material de guerra dali roubado.

É público que, no âmbito deste último inquérito, que conduziu à acusação do ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, e à extração de certidão por alegadas falsas declarações prestadas pelo ex-chefe da Casa Militar do Presidente da República, tenente-general João Cordeiro, a Procuradoria-Geral da República emitiu comunicado publicitando que o diretor do DCIAP, Albano Pinto, considerou injustificada a decisão dos procuradores do MP responsáveis pelo mesmo de procederem à inquirição de Marcelo Rebelo de Sousa e de António Costa atendendo «à elevada dignidade dos cargos exercidos pelas pessoas a ouvir», respetivamente Presidente da República e primeiro-ministro.

Mais acrescentava a mesma nota da PGR que, na «sequência da análise a que direta e aprofundadamente procedeu, o diretor do DCIAP concluiu, perante os elementos constantes dos autos, que tais inquirições não revestiam relevância para as finalidades do inquérito nem tão pouco se perfilavam como imprescindíveis para o apuramento dos crimes objeto de investigação, dos seus agentes e da sua responsabilidade».

E adiantava que «o diretor do DCIAP entendeu, ponderada também a data limite para o encerramento do inquérito, que tais diligências não deveriam ter lugar, o que mereceu a anuência dos magistrados titulares».

Veio, porém, a saber-se que os ‘magistrados titulares’, afinal, não terão dado ‘anuência’ à decisão do diretor do DCIAP e, para que a sua posição ficasse registada e clara, fizeram lavrar nos autos as perguntas que pretendiam ver respondidas pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro.

Perguntas que a revista Sábado trouxe a público, originando a abertura de inquérito disciplinar aos ‘magistrados titulares’ – dois dos quais Vítor Magalhães e João Valente.

No entretanto, aproveitando participação numa cerimónia pública, a procuradora-geral da República voltou a referir-se ao caso e declarou à Lusa: «A intervenção do diretor do DCIAP surgiu num contexto processual e factual que mais não foram do que o exercício das funções diretivas que lhe estão cometidas». Lucília Gago aproveitou ainda a ocasião para garantir que não teve conhecimento prévio nem intervenção sobre a tomada de posição de Albano Pinto, que, vincou, «se circunscreveu aos seus poderes de direção».

É óbvio que os magistrados do Ministério Público devem obediência hierárquica e que o diretor do DCIAP tem toda a legitimidade para avocar os inquéritos que correm no seu Departamento, até porque estão sob a sua alçada, e responsabilidade, direta.

Mas qual era a necessidade de a PGR ter feito o comunicado que fez e nele incluir a referência a uma afinal inexistente «anuência» dos «magistrados titulares»?

E, perante a falsidade desta desnecessária referência, será exigível aos magistrados visados que permaneçam quedos e mudos ou deve reconhecer-se-lhes o direito da imediata e pública reposição da verdade?

Mutatis mutandis, Albano Pinto e Lucília Gago agiram agora exatamente do mesmo modo que o antigo procurador-geral da República Pinto Monteiro e o também ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça Noronha do Nascimento em relação a José Sócrates quando este exercia as ‘elevadas funções’ de primeiro-ministro e surgiram as suspeitas de envolvimento em casos como Freeport ou Face Oculta.

Estamos evidentemente perante casos muito diferentes.

Mas nuns como nos outros, são os pilares do Estado que são postos em causa.

Tancos, revelando a depauperação e bandalheira a que chegou o Estado português no incumprimento das suas mais elementares funções, tornou-se uma farsa tão gigantesca que já ninguém crê em coisa alguma.

E, nuns como noutros, a Justiça, de cócoras perante o poder político, desvendada e com os pratos da balança desequilibrados, fica com a espada voltada para o seu próprio pescoço.