A cidade do não…

A cidade do Porto nestes últimos anos transformou-se na ‘cidade do não’. 

«Insisto muito na ideia de que pode haver uma participação ilusória: reunir duzentas pessoas numa sala e apresentar-lhes um programa afirmando que este é o plano que se elaborou. Isto nem se quer é uma consulta, isto é, publicidade, é uma falsa participação.»

Henri Lefebvre, 1967:4

A cidade do Porto nestes últimos anos transformou-se na ‘cidade do não’. Esta cidade do não é consequência de programas e de políticas que promovem a cidade do não à habitação, do não à participação, do não à diversidade social, do não ao lugar, do não à proximidade. Uma cidade do não que tem promovido a atomização das desigualdades socio-espaciais; que faz da injustiça espacial a marca das suas políticas de reabilitação e regeneração urbana.

A questão central da cidade do não remete-nos para a dimensão estrutural da desigualdade na pobreza e na exclusão ao direito à habitação. Estamos novamente perante um problema de negação do direito à habitação, negação que tem a sua fonte na impossibilidade de a grande maioria da população da cidade e do Grande Porto aceder a uma habitação digna por meio de aquisição (recorrendo ao crédito bancário) ou através de um contrato de arrendamento justo no mercado livre.

A cidade do não aparece plasmada nas políticas municipais, como característica da condição humana, isto é, fazendo crer que a mesma poderá ser «aceitável» ou «inaceitável». Será aceitável uma comunidade viver sem luz, sem água, sem esgotos, sem mobilidade e sem conforto na sua cidade? 

A especulação imobiliária, a desregulação das políticas de solo urbano, a inexistência de uma política local que garanta uma habitação básica e digna para todas as classes ou grupos sociais, tem alimentado a deslocalização, a gentrificação e a deportação dos de dentro para fora e dos de fora para dentro. Claro que, neste processo da cidade da não habitação, também temos alguns exemplos, ainda que poucos, que contrariam este processo de expulsão dos de dentro – como é o caso da operação de habitação básica participada na ‘Ilha’ da Bela Vista (2013-2017), que garantiu o direito ao lugar para todos os que lá moram. 

No Porto, um ‘governo de espertos’ tem promovido um conjunto de programas de reabilitação dentro e fora da cidade do centro (ARU do Centro Histórico, ARU de Campanhã, ARU do Bonfim, ARU da Lapa, etc.), incendiando o solo urbano, promovendo um aumento de renda urbana sem justificação económica e social, sem justiça e equidade fiscal, desequilibrando a lei da oferta e da procura, colocando em causa a cidade como construção coletiva de Bem Público. 

A racionalidade neoliberal deste ‘governo de espertos’ transforma a vida da cidade, não em função dos bens públicos e dos interesses coletivos, mas em função das mais-valias do mercado e da financeirização da vida económica globalizada que servem. Estamos perante uma cidadania reduzida ao cidadão como homo oeconomicus, que elimina a ideia de um povo, isto é, de um demos que afirme a sua soberania política coletiva. Uma gestão política da cidade refém dos parâmetros económicos da ideologia neoliberal, que nos remete para a eliminação daquilo que Hannah Arendt designou como «vida normal» e que Marx chamou de vida confinada pela «necessidade».

É o reaparecimento de novas formas de luta pelo direito à cidade (por exemplo: ‘O Porto não se vende’), o caso dos movimentos urbanos contra as expressões espaciais do domínio do capital financeiro, bem impressas na gentrificação e na especulação do solo urbano. Nestes contextos, salientam-se as novas propostas do direito à cidade de Harvey, de Soja e de Alessandri Carlos, a partir de uma reinterpretação do direito à cidade de Lefebvre (1968), que nos confrontam com os problemas da globalização económica, da subordinação do Estado ao capital internacional e consequente privatização do solo e dos serviços urbanos públicos.

Fernando Matos Rodrigues

(Antropólogo e Inestigador CICS.Nova_UM/LAHB)