Carlos Barahona Possollo: ‘Não há regra que não seja para subverter’

Polémico, tanto pinta Cavaco Silva como atos sexuais gays, Barahona é um apaixonado por Veneza. E é a cidade flutuante que dá o mote à sua última exposição.

Carlos Barahona Possollo: ‘Não há regra que não seja para subverter’

O detalhe das pinturas suspensas nas paredes revela uma precisão quase microscópica. Para atingir este grau de perfeccionismo, Carlos Barahona Possollo teve de colocar óculos sobre os óculos que usa habitualmente e de recorrer a finíssimos pincéis com apenas três pelos. «É um exercício de concentração» que envolve «muitas horas de sofrimento», explica o artista.

Autor do retrato oficial de Cavaco Silva patente no Museu da Presidência e de um Santo António que foi oferecido ao Papa Francisco – e por ele abençoado –, Barahona Possollo é também conhecido pelas suas pinturas realistas de nus, algumas das quais provocaram escândalo por representarem de forma explícita e realista atos homossexuais.
Noutro registo completamente diferente, mais sereno, o artista acaba de inaugurar, no seu ateliê, uma exposição dedicada a Veneza, uma paixão que mantém há 25 anos. «Isto serve um bocadinho de resposta às pessoas que me dizem: ‘Só pintas gente nua, não se pode comprar nada, é tudo uma pornografia’». Mas para a primavera já está a preparar uma «micro-exposição» de cinco pinturas gay que prometem provocar escândalo. «É o pior que eu já fiz», revela. «Vai ficar tudo histérico, vão-me odiar».

Esta exposição sobre Veneza resulta de alguma viagem particular ou de um interesse mais antigo?

Quem vai a Veneza não deixa de ficar apaixonado e de querer voltar. Tenho voltado várias vezes.

Quando a visitou pela primeira vez?

Em 1993. Há várias maneiras de chegar a Veneza. Dessa primeira vez cheguei de comboio, da linha de Milão. Quando se vai na ponte do comboio vê-se apenas alguma coisa no horizonte, e quando se chega à estação também não se percebe o que é. Mas quando se sai da estação, a escadaria acaba no Canal Grande, e eu fiquei completamente siderado. É uma impressão única.

Na altura já pintava?

Sim.

Fez alguma coisa?

Desenhar é fácil, mas pintar em viagem é muito complicado. Já tentei, em Itália, até fiz uma mala especial.

Com compartimentos?

Sim. No avião partiram-me a mala toda, mas ainda funcionava. Cheguei na primavera, já estava calor, vinham as moscas e os piolhos do ar colar-se no óleo. Há uma data de coisas que não aparecem nos filmes e que são terríveis! [risos]

Então fez estas pinturas já cá em Portugal?

Nos últimos três anos fui juntando fotografias e já ia aos mesmos sítios tirar uma fotografia mais especial ou numa altura particular do dia. Na última vez que lá estive fui militantemente à procura de coisas específicas e a pensar que valia a pena experimentar pintar paisagens, que não é aquilo que costumo fazer.

Pintar uma paisagem é muito diferente de pintar um corpo humano ou um retrato?

Pode não ser. Há uma regra: deve-se pintar uma pessoa, uma paisagem ou uma peça de fruta com a mesma atitude. Isso dá uma uniformidade de critério ou técnica que pode ser muito interessante. Não há regra que não seja para subverter, mas pode-se pintar uma pessoa como se se pintasse uma paisagem. E vice-versa.

No caso de Veneza, há a particularidade de não ser uma paisagem qualquer, mas uma paisagem que envolve sempre água, reflexos, etc. Essa proximidade da água transforma tudo o resto?

Acho que sim. E percebe-se lá que a água, por capilaridade, sobe nas casas até muito alto. Eles restauram as casas, mas há ali um metro e meio de reboco e de tinta que está constantemente a cair. E vê-se os tijolos molhados… Há aqui uma coisa entre o sensual e o mórbido que é muito fascinante.

Veneza tem esses dois aspetos muito vincados. É a cidade do Carnaval e do prazer – era muito procurada para turismo sexual, pelas suas prostitutas…

Prostitutas e prostitutos. Havia gondoleiros que também se especializavam nesse tipo de serviços.

E ao mesmo tempo tem um lado decadente.

Veneza está construída em cima de lama. A putrefação é muito presente. Há um contínuo – Eros e Thanatos, amor e morte. 

Oque também tem muito que ver com a sua pintura…

Morte e sensualidade são duas coisas que me perseguem – a mim e a toda a gente.

Veneza também tem uma história muito rica em termos de pintura. Isso influencia a sua maneira de olhar e de pintar?

Influencia muito. Os venezianos, desde Carpaccio, sempre pintaram Veneza ela-mesma, a cidade ganha protagonismo sobre as personagens e as cenas que estão em palco. Mas além da pintura móvel a óleo, há os frescos todos. E um dos meus ídolos absolutos, o Tiepolo, era veneziano. Do século XVIII será, para mim, o maior, o mais extraordinário.
De qualquer modo não se pode dizer que lhe sirva de modelo.
Não para esta exposição. O Tiepolo não era paisagista.

Monet e Turner foram dois dos grandes pintores que pintaram Veneza e têm um ambiente mais difuso, contornos muito esbatidos… 

Aqui não há nada disso. É tudo muito definido.

Para pintar com este nível de detalhe teve de usar algum tipo de lente de ampliação?

[Acena] Acho que posso não ter feito muito bem à minha visão. Eu uso óculos e por cima dos óculos tive de pôr mais óculos. Cheguei a pintar alguns quadros com um pincel com três pelos…

Isto pode tornar-se uma obsessão?

Um bocadinho. Não queria fazer formatos grandes, queria fazer formatos pequenos. E acabei por tentar dar mais detalhe – o que foi um bocadinho mais penoso do que estava à espera. É um exercício de concentração – e é melhor encará-lo como tal. [risos] Até porque muitas vezes o efeito só aparece no fim. Tem muito tempo de sofrimento. Os quadros são quase todos em madeira [coberta] com gesso, que é lixado até ficar tipo papel. A textura que os quadros têm é só da massa da tinta, o que lhe dá um ar mais líquido, mais pegajoso. 

Este detalhe é o oposto do que associava à pintura veneziana, que é mais…

Impressionista e liberta. Eu pensei que poderia ir por aí, mas de repente caí para o outro lado, e pronto – decidi também não forçar.

Quando visita Veneza também procura conhecer lugares menos turísticos?

Sai-se sempre um bocado das estradas mais pisadas. Veneza não é assim tão grande, mas como cidade antiga é muito grande. E é um labirinto. A pessoa perde-se e de repente acorda num sítio nunca visto. Há um ou dois pontos menos concorridos – como a Escola de S. João Evangelista, que não está num sítio assim tão óbvio e é uma joia, São Sebastião… E também tive oportunidade de ver a Veneza pobre. Veneza tem um lado rico e um lado miserável. Nas traseiras da ilha de S. Pedro há um bairro onde se percebe que as pessoas passam mal. Esse contraste entre o esquálido e o luxo inimaginável daqueles palácios… abana.

Tem-se a impressão de que os palácios não apenas são riquíssimos em termos de arquitetura como estão recheados de tesouros…

Os edifícios são preciosos, e custaram muito caro quando foram feitos. Construir uma cidade em cima da lama é muito mais caro do que fazê-lo na terra firme. Aquilo custou uma fortuna inimaginável. Quando vemos tudo a tombar, as brechas a abrir, os tirantes já presos com cabos e tudo periclitante, ficamos a pensar: ‘Quando é que vem tudo abaixo?’.