Uma canção de embalar….

O primeiro-ministro aproveitou o Natal para tentar relativizar a desgraça conhecida, com cirurgias adiadas e escandalosos atrasos nas consultas, urgências fechadas e equipas médicas demissionárias por falta de condições

Na mensagem de Natal aos portugueses, cuidadosamente encenada numa unidade do SNS, o primeiro-ministro revelou ser a saúde a sua nova paixão, nomeando-a prioritária entre as preocupações do Governo.

Se, em anterior mensagem natalícia, António Costa já  indicara a Educação ou o pré-escolar como desígnios da sua acção, neste caso reconheceu alguns erros e prometeu dinheiro para acabar com a suborçamentação do sector, reparar as dívidas dos hospitais e contratar mais profissionais. 

Esqueceu-se, contudo, de mencionar que as famigeradas cativações de Mário Centeno na Saúde não aconteceram à sua revelia, mas, obviamente, com a sua cobertura.

E esse é um dos pontos que mais impressionam na mensagem de António Costa ao país. É que ele fala como se estivesse recém-chegado ao Governo, e só agora tivesse reparado na gravidade do problema e feito o levantamento da situação vivida nos hospitais públicos.

E o que espanta, também, é que prometa uma mudança no funcionamento do SNS, como se as mazelas profundas de que padece o sistema ficassem resolvidas por ‘artes mágicas’, quando mantém a confiança em Marta Temido, uma ministra que  é um verdadeiro ‘erro de casting’.

Como é possível manter em funções alguém que já se percebeu actuar de acordo com uma agenda ideológica, onde não cabem, por exemplo, as parcerias público-privadas, com resultados excelentes em Braga ou Vila Franca, uma já terminada e outra quase? 

O primeiro-ministro aproveitou o Natal para tentar relativizar a desgraça conhecida, com cirurgias adiadas e escandalosos atrasos nas consultas, urgências fechadas e equipas médicas demissionárias por falta de condições. E teima numa ministra viciada num radicalismo mais próximo do BE do que do PS, que se caracteriza pela arrogância, divorciada das realidades, hostil aos enfermeiros e sem diálogo com os médicos.

A nova narrativa de Costa para a saúde surge, curiosamente, a reboque de um relatório do Tribunal de Contas, conhecido em Novembro, muito crítico para o Governo, no qual se faz uma avaliação positiva da gestão público-privada do Hospital de Vila Franca, que não só poupou 30 milhões de euros ao Estado como melhorou o acesso aos cuidados de saúde das populações que estão na sua área de influência. 

Segundo o relatório, com menos custos para o erário público houve mais consultas, mais episódios de urgência e, até, o internamento e o ambulatório cresceram 96% em número de doentes atendidos, entre 2012 e 2017.

Com esta auditoria – embaraçosa para o Governo – o Tribunal reconhece mesmo que a «eficiência económica» da PPP de Vila Franca só é ultrapassada pelo Hospital de Braga (que deixou de ser PPP e cuja nova administração já admite um aumento de encargos no próximo ano, em gestão pública…) no ranking dos melhores entre 29 unidades observadas.  

Ao dizer «olhos nos olhos» que «sei bem que a Saúde é actualmente uma das principais preocupações dos portugueses e que há vários problemas para resolver no SNS», António Costa faz  uma espécie de mea culpa sem se  assumir  e procede ao reconhecimento tardio da situação caótica que se verifica no SNS. 

A comunicação monotemática, em plena quadra festiva, poderá ter-lhe servido para aliviar a consciência, mas não ilude a degradação em que caiu o sector e as vítimas que se somam por falta de assistência atempada. Conhecem-se bem as consequências, por vezes irreversíveis, sobretudo em algumas especialidades como a Oncologia, quando os doentes vêem adiados tratamentos ou cirurgias. 

A situação hospitalar pública ganhou tais contornos que até já mereceu as atenções de um jornal científico, The Lancet, uma prestigiada publicação internacional especializada, que inseriu, ainda em Outubro, um artigo no qual aconselhava vivamente António Costa a aproveitar a legislatura para reparar os problemas que perturbam e ameaçam a sobrevivência do SNS.

E esse objectivo é bem mais importante do que anunciar, como se fosse a ‘cereja em cima do bolo’, a eliminação faseada das taxas moderadoras, a partir do próximo ano.

É uma receita já conhecida. Lembra os passes sociais, que ficaram mais baratos em vésperas de eleições, mas sem se cuidar da melhoria da oferta, com os transportes públicos cada vez mais precários, à míngua de manutenção e de renovação dos equipamentos. 

Eliminar taxas moderadoras é útil para embelezar discursos, calar as oposições e silenciar descontentamentos. Mas, contas feitas, não passa de uma habilidade. E não é sério, quando se sabe da desastrosa derrapagem que compromete a viabilidade do SNS, tal como o conhecemos, talvez um dos principais motivos de ‘orgulho nacional’, a completar 40 anos em democracia. 

Apesar do espírito de Natal, convirá não abusar das canções de embalar…