Miguel Guimarães: “Se a saúde privada amanhã fechasse as portas estávamos todos tramados”

A Ordem dos Médicos tem eleições na próxima quinta-feira e Miguel Guimarães é candidato único a bastonário. À beira do segundo mandato, diz que devolver a dignidade aos médicos será a principal causa. Acusa o Governo e a ministra de falta de estratégia e empatia e deixa o aviso: insistir na intenção de reter jovens…

Surpreendeu-o não haver outra candidatura a bastonário?

Surpreendeu. Acho que as coisas estão tão mal que já ninguém quer ser bastonário.

Foi esse o motivo?

Não sei, mas é possível. Neste momento ser bastonário é complexo. O bastonário tem um poder muito limitado e o estatuto da ordem tem também poderes limitados, que decorrem das delegações da AR, tanto na área disciplinar como na formação e não confere poderes em áreas como fiscalização e auditoria.

Em áreas como a definição de vagas para a formação de médicos internos, o Governo acha que a Ordem tem poderes a mais.

A Ordem não tem poderes a mais, quem decide o número de internos que existem no país é a ministra da Saúde, não somos nós.

A partir das vagas identificadas pela Ordem.

As vagas são identificadas a meias. Houve duas auditorias, a nossa e a da ministra. A nossa vai ser divulgada, mas a da ministra vale a pena lê-la. A maior parte das falências que apontam são ao ministério, à ACSS, ao conselho nacional de internato médico, aos hospitais. A ordem faz visitas de idoneidade, o único tipo de auditorias que pode fazer por lei, e a partir das visitas atribui ou não as idoneidades formativas para as vagas pedidas. O Estado pede duas vagas para cirurgia geral em Santa Maria, o hospital tem de mandar um inquérito a dizer quantas cirurgias fez no último ano, quantos especialistas tem, etc. Se o colégio não atribuir as capacidades formativas, tem de fundamentar porquê. Desde que sou bastonário é assim. E são menos de 5% as vagas recusadas. O SNS só tem condições para mais internos se aumentar a capacidade humana, se tiver mais especialistas.

A ministra da Saúde disse que na ultima legislatura houve um reforço de 3800 especialistas.

A maior parte dos médicos que há a mais hoje são internos da formação geral. Especialistas propriamente não temos mais 3000, teremos mais 1000. Mas isto não entra em linha de conta com os especialistas que entretanto reduziram o seu horário de trabalho. Neste momento no SNS há quase 1700 médicos especialistas com horário reduzido de trabalho, 20 horas ou menos, 5, 10.

Médicos mais velhos?

Mais velhos ou menos velhos, uma pessoa de 40 anos pode pedir redução de horário de trabalho.

Para ir trabalhar no privado?

Sim e eles aceitam porque mais vale 20 que nenhuma. Isto ao mesmo tempo que fomos tendo cada vez menos médicos em dedicação exclusiva, que o Governo não quis retomar. Se for ver a força de trabalho em número de horas hoje é muito menor, mas os médicos trabalham muito mais. Já não há aquele momento em que o pessoal ia tomar um café, isso acabou.

Em que sente mais a limitação de poderes?

Acha-se que um bastonário tem um poder imenso que não tem. Quando o primeiro-ministro vem dizer que a Ordem dos Médicos não tinha autorizado o curso de Medicina da Católica é mentira.

Mas deu parecer negativo.

Mas é o Estado que decide. A A3ES é uma agência do Estado, foi o Estado que fez o parecer final e bem, na realidade não é muito diferente do que disseram os nossos técnicos. O que a Católica fez fica para a história do país. Esteve a tentar influenciar a A3ES a tomar uma decisão positiva sobre um curso que sabem que tem deficiências. A Católica acha que é a universidade mais poderosa do país e disse que o curso ia abrir. Depois quando perceberam que a ordem tinha dado um parecer que não era positivo e que havia falhas, que já estão a corrigir, critica-se a Ordem.

As falhas que apontaram eram sobretudo no tempo para a prática clínica?

Tinham menos de metade do tempo mínimo que existe em qualquer curso, sendo que essa parte será no Hospital da Luz e no Hospital Beatriz Ângelo, que é uma PPP, se amanhã deixar de ser deixam de ter Loures. Se isto acontecer então é que não podem ter curso de Medicina.

Acha que isso pode pesar na decisão sobre a renovação da PPP da parte do Estado?

É politicamente incorreto mas tenho de o dizer. Se houver interesses relacionados com alguém do Governo na Católica, se calhar…

Tem conhecimento de algum interesse?

Não tenho conhecimento de nada, só acho estranho que um primeiro-ministro venha falar de uma escola de Medicina.

Teve pressões para que a Ordem desse parecer positivo?

Tive imensas pressões. Não sou eu que dou parecer, são técnicos. Não é um parecer propriamente negativo, era um parecer que apontava deficiências, até foi uma coisa simpática.

Mas defende a redução das vagas para Medicina.

Não defendo a redução de vagas, acho que as vagas que têm de abrir são aquelas que as escolas de Medicina podem formar. Hoje a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto pede 180 ou 190 estudantes, o Estado no ano passado atribuiu-lhes 330. Têm um edifício feito há quatro anos em que os anfiteatros para as aulas teóricas são para 190 alunos, nem sentados no chão cabem.

No passado a Ordem chegou a defender que era preciso diminuir o numerus clausus porque ia haver desemprego médico. Não é a sua posição?

Não, acho que o critério de emprego e desemprego é do Governo. O Governo tem de ter algum cuidado para que as pessoas não vão todas para a mesma área e modelar a oferta em função das necessidades do país. A A3ES também tem essa função: aquilo que a Católica veio criticar de se ter dito que havia rácio suficiente de médicos, foi uma avaliação do Estado não foi da Ordem. Pode haver um problema de acesso à especialidade, mas isso não depende das escolas. Se as vagas fossem apenas para os estudantes formados em Portugal ainda sobravam, mas na Europa as portas estão abertas e qualquer estudante pode vir cá fazer a especialidade e não parece possível mudar isso.

Há três anos dizia que se estava a candidatar com a pedalada de Marcelo. Qual é o estado de espírito?

Estou um bocado abalado. Como lhe estava a dizer, ser bastonário não é fácil. Tal como os médicos têm uma responsabilidade civil enorme, o bastonário também é confrontado com coisas que não pode resolver. E ainda ontem recebi uma coisa de uma doente a propósito de a ministra ter anunciado que vai ter um gabinete de segurança por causa das agressões e um oficial de segurança junto dela – o que dava para um sketch: a ministra vai estar mais segura, os profissionais vão continuar na mesma – esta doente dizia-me que isto é para atirar areia para os olhos das pessoas, que quem tem de definir as regras em relação aos utentes é a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros, quando não temos intervenção. No dia em que não tiver energia saio.

Tem 50 pontos no seu programa, de medidas para o SNS a declarar o exercício da medicina como profissão de desgaste rápida. Qual será o principal objetivo no segundo mandato?

A principal preocupação e que me vai mover é recuperar os médicos. Neste momento, contrariamente ao que é dito pelos políticos, o principal problema do SNS não é ter mais ou menos 800 milhões de euros, porque se não forem bem aplicados não servem para nada; não são as instalações – e há instalações degradantes – nem mesmo equipamentos fora do prazo. O problema são as pessoas, a falta de pessoas e sobretudo não estarem motivadas. Se a ministra mantiver o discurso e a atitude que tem tido, o SNS pode, de facto, acabar. Se os médicos saírem, fecha o SNS.

Seria um cenário extremo.

Não é preciso que saiam todos, basta que continuem a sair. Há quatro anos as vagas que abriam no Estado para recém-especialistas ficavam praticamente todas preenchidas. Em 2018, 20% das vagas não foram preenchidas. Em 2019, 30% não foram preenchidas. Se continuar assim é uma desgraça total. Por isso é que a ministra vem falar de obrigar os médicos a ficar. Se vier para a frente com isso, não fica ninguém.

O programa do Governo prevê a criação de um pacto de permanência, que a ministra já disse que não seria obrigatório. Não vê possibilidade de entendimento neste tema?

Nenhum. Vai ter a pior guerra que pode imaginar, ela e o Governo. Não seria obrigatório porque para sair pagavam o que devem ao Estado? Por que o Estado não paga o que lhes deve a eles? Já foram feitas essas contas pelo nosso economista. Quando um interno está a trabalhar está a aprender mas faz atos médicos, consultas, urgência. Os atos médicos têm um valor e consegue fazer-se as contas à produção. No fim da especialidade percebe-se quem deve dinheiro a quem. E quem deve dinheiro aos internos é o Estado e não deve nem 5 nem 10 mil euros, deve mais de 200 mil euros.

A ministra tem dito que é uma medida que vai depender de um acordo que tem de ser negociado.

Não há acordo possível. Ou a ministra, e deve estar a fazer por isso, consegue provar que os médicos internos devem dinheiro ao Estado ou não consegue exigir um tostão que seja. Mais: no Santa Maria, o maior hospital do país, os internos passam a vida a fazer horas extra. Em vez de pagarem as horas metem-nas numa bolsa. Ao fim de quatro meses apagam a bolsa. Portanto, se formos ver quem deve dinheiro a quem, o Estado fica mal na fotografia. Tem de se fazer aquilo que se faz num país normal, que é conquistar as pessoas.

Como?

Em primeiro lugar é preciso respeitar as pessoas e ter um projeto. Não comentei o programa do Governo nas eleições para não ferir suscetibilidades mas este programa que existe para a Saúde não é nada, não existe um fio condutor para a Saúde em Portugal.

Há ideias de maior proximidade, continuar a reforma dos cuidados primários, integração de cuidados…

Como é que vende uma ideia de que vai continuar a apostar no SNS e, em 2018, 2,4 mil milhões de euros foram para pagar serviços ao setor privado e social, ou seja 25% do orçamento para a Saúde? Retirando PPPs e subsistemas, são 1,4 mil milhões de euros. Não querem a privada mas dependem da privada. Se a privada amanhã fechasse as portas estávamos todos tramados. Em vez de ficarmos um ano à espera de cirurgia ficávamos dois ou três, em vez de demorar um mês a fazer uma TAC demorava quatro ou cinco meses.

Está a dizer que a ideia de garantir resposta no SNS é utópica ou que não tem havido esse investimento?

É algo de que nos estamos a afastar. Em 2014 havia mais internalização do que em 2017 e 2018.

Não vê sinais positivos no reforço do orçamento para 2020?

Depende de como for utilizado o dinheiro. Haver mais dinheiro para a Saúde é melhor do que haver menos. É importante que este dinheiro seja investido nas pessoas. Como dizia, a minha principal missão nestes três anos é recuperar os médicos, recuperar a imagem, a dignidade. Nos 40 anos do SNS fizemos a análise daquilo que os médicos fazem em 24 horas, o número de pessoas que são salvas. Queremos dar uma imagem real daquilo que os médicos fazem e são e para isso vamos desenvolver um projeto, que se vai chamar Salvar Vidas, cujo objetivo é chamar a atenção para os pilares fundamentais do sistema de saúde. Queremos trabalhar em áreas como a literacia da saúde e prevenção, suportes essenciais. Quando mais informada for a população e mais apostarmos na prevenção, mais estável, saudável e se calhar mais sustentável será o sistema, porque também implica investimento. Passamos a vida a falar disto mas não fazemos nada. Tínhamos uma proposta de acesso a plataforma de informação médica para toda a população e que basicamente não avançou. Assinaram um protocolo que não foi cumprido e isto mostra a seriedade de quem está no Governo.

Não dá o beneficio da dúvida a Marta Temido neste início de ciclo?

Neste momento já não posso dar. Dei até agora, temos de andar para a frente. E o nosso caminho tem de ser defender os doentes e a qualidade da medicina.

É uma declaração de guerra ao Governo?

Não é uma declaração de guerra. Pode ser entendido como entenderem, mas temos de fazer o nosso caminho, não podemos andar a fazer de conta.

A ministra da Saúde disse na última entrevista que a ideia de caos na Saúde não é justa e fala-se até de uma campanha negativa que acaba por favorecer o setor privado. A Ordem não tem tido uma posição pessimista?

A posição da Ordem é a posição que qualquer pessoa tem quando se vê confrontada com 100 ou 200 médicos num serviço e que relatam horas seguidas a trabalhar, sem tempo para almoçar, às vezes vemos as pessoas chorar. O que está a acontecer no SNS é de tal maneira grave que o sentimento de revolta está instalado. Não é só nos médicos, são os enfermeiros, todos. É muito mais grave do que a ministra pensa e portanto neste momento é um vulcão que explode em qualquer altura. E nós temos contido o vulcão. Não vamos fazer uma visita a Faro por acaso, vamos a Faro porque estão desesperados, ninguém lhes liga nada, ouvimos as pessoas. E a tutela ainda vem dizer que no Algarve não há falta de médicos. Passa a vida a fechar, todos os dias há uma especialidade a fechar e não faltam médicos. Não são problemas novos mas estão cada vez mais graves. Quantas urgências pediátricas fecharam no passado como no Garcia de Orta? Quantas têm fechado por rutura? Quantas estão na iminência de fechar? O que acontece é muito mais grave do que é público.

Essa revolta instalada pode dar em quê? Mais declarações de recusa de responsabilidades?

Isso já são centenas, as pessoas podem deixar de querer trabalhar no SNS, sair.

Enquanto o setor privado continuar a contratar?

Neste momento faltam 230 mil médicos na Europa, é preciso ter noção disto. Os médicos têm emprego na Europa durante os próximos 10, 20 anos, ou mais. O setor privado já tem a trabalhar em exclusivo mais de 13 mil médicos, são mais do que os que trabalham em exclusividade no SNS, ainda que no SNS trabalhem mais médicos. Quem está a fazer crescer o setor privado é o Estado, é o Governo, é o Partido Socialista. E o BE e o PCP. Os dados são objetivos. Se em 2014 aquilo que era transferido para o setor privado e social era 2,1 mil milhões de euros e em 2018 são 2,4 mil milhões de euros, o trajeto que está a seguir é de levar cada vez mais coisas para a privada porque não tem capacidade de resposta.

Quando diz que o SNS corre o risco de acabar, onde está essa linha?

Se a ministra insistir na questão da obrigatoriedade corre esse risco. Acha que alguém ameaçado fica a trabalhar no SNS, a ganhar pessimamente mal? Se não é isto que a ministra pensa, já devia ter dito que não é o que pensa e até agora não o fez. Para ter um SNS mais forte tem de tratar melhor as pessoas, tem de valorizar o seu trabalho, tem de pagar melhor.

Quanto mais?

Um ministro ou ministra tem de acarinhar os profissionais, antes dos salários tem de os respeitar. Se não conseguir ter uma relação empática com os profissionais, neste caso com os médicos, depois é muito difícil reter as pessoas.

É possível recuperar essa relação com a ministra da Saúde?

Nós estamos dispostos a trabalhar com a ministra da Saúde, não estou aqui só a bater na ministra. Há coisas que não tem feito bem, nomeadamente nos recursos humanos. Tem de se aproximar dos profissionais. Depois demos uma solução à ministra que inicialmente disse que sim, mas terá havido limitações das Finanças, que era os médicos poderem voltarem a ter contratos de dedicação exclusiva, com melhor remuneração.

O Governo defende aumentar salários em função do desempenho, não apenas da exclusividade. Não faz sentido?

O misticismo da exclusividade não é nosso. Não é possível querer que um médico que estudou 13 anos, primeiro num curso em que é difícil entrar e fazer e depois na prática de especialidade, ao fim desses anos vá ganhar 1700 ou 1800 euros por mês. Ninguém aceita. Não podemos achar que isto, como está, compensa o trabalho que um médico tem ou a responsabilidade que tem.

O que seria o valor aceitável?

Respondo de outra maneira. Os médicos deviam ter uma carreira semelhante à dos juízes, não há motivo nenhum para não terem.

Era uma proposta de António Arnaut.

Sempre estive de acordo. Respeitemos que estamos no setor público onde os vencimentos normalmente são mais baixos do que no privado. Mas um juiz não estuda mais do que um médico, a carreira não é mais longa nem mais complexa – não digo que julgar não seja difícil, mas um médico também tem de tomar decisões difíceis. Se a carreira fosse semelhante à dos juízes já era positivo.

É nisso que vai assentar a revisão da carreiras médicas que quer lançar?

O nosso objetivo é fazer um novo relatório das carreiras médicas como o que foi feito em 1961, que na altura fez também um retrato do sistema de Saúde. A comissão vai ser liderada pelo dr. Mário Jorge Neves e termos este relatório vai ser um momento decisivo. O grupo de médicos já está escolhido e quisemos que fosse eclético, com representantes das diferentes regiões e espetro político, do PCP ao CDS, para que se reflita sobre as principais facetas do SNS e quais seriam as melhores soluções para termos um SNS a funcionar de acordo com aquilo que está previsto na Constituição dentro das limitações que existem no país. Vão ter uns meses para trabalhar e as propostas serão apresentadas ao Governo.

Ouvimo-lo menos sobre a qualidade na saúde no privado. Houve recentemente o caso da criança que morreu depois de ter ido duas vezes à CUF Almada, onde as queixas terão sido desvalorizadas. Por que razão a Ordem não se pronunciou?

A Ordem não se pronunciou porque a situação não está esclarecida. Temos uma criança que morre de repente e não sabemos de que morreu. Não existem diagnósticos 100% seguros, é preciso cuidado a abordar estas questões. É evidente que já entrei em contacto com a direção clínica da CUF e ficaram de me dar mais dados, abriram um inquérito à medica que viu a criança. A médica pode ter feito os procedimentos todos corretos e ter falhado o diagnóstico. Tenho igual preocupação com a qualidade da medicina nos serviços privados e uma coisa que pedimos na AR é que a Ordem possa fazer auditorias aos serviços públicos e privados. No início do meu mandato visitámos os hospitais privados quase todos.

Mas dá menos atenção ao privado.

Faço-o porque o SNS é que é o sistema principal que existe em Portugal, aquele a que a grande maioria das pessoas têm acesso e onde a maioria dos médicos são formados. E a maioria das queixas que temos são do setor público, onde se fazem naturalmente coisas muito boas – e a transplantação é uma dessas áreas de que se fala pouco e estamos entre os melhores, – mas há coisas que têm de ser resolvidas. O cancro são os serviços de urgência, consomem muitos recursos, têm uma variabilidade muito grande, onde 50% dos doentes não têm problemas urgentes e continuamos a ter este problema nas mãos que temos de resolver.

O caso do bebé Rodrigo, que revelou os processos pendentes na Ordem, foi o momento mais difícil do seu mandato?

Foi. A sociedade civil confunde a Ordem com o bastonário, claramente, não distingue a diferença que existe no Estado, e que também temos, entre tribunais e Governo. Ninguém responsabiliza o primeiro-ministro pelo mau funcionamento dos tribunais.

Também responsabiliza.

Sim, mas não da forma como foi feito.

Ficou chocado com os processos disciplinares pendentes no conselho disciplinar do Sul?

Fiquei, não sabia que havia quase 2000 processos pendentes.

Ficou a ideia de que em casos de má prática os médicos se podem proteger uns aos outros.

Não acho que essa ideia seja real. Ainda ontem (esta semana) o conselho disciplinar expulsou um médico. A maior parte das queixas são leves, de doentes que esperaram demasiado tempo por um médico, que acham que o médico não foi educado, que não fez tudo o que devia ter feito.Tenho confiança absoluta nas decisões dos conselhos disciplinares, incluindo no conselho disciplinar do Sul. Fiquei chateado por terem cinco processos do mesmo médico e não terem decidido nenhum tendo passado seis anos, aparentemente com situações potencialmente graves. Mas não acho que os conselhos disciplinares sejam corporativistas.

Em que ponto está o caso desse médico, Artur Carvalho?

O conselho disciplinar disse que iria tomar uma decisão em janeiro, espero que o façam. Fica bem que seja este conselho disciplinar e não outro a tomar a decisão sobre Artur Carvalho, atendendo a que vamos ter eleições. A Ordem foi a única instituição que perante o caso do bebé Rodrigo assumiu as suas responsabilidades, que têm a ver apenas com a parte disciplinar. Eu assumi a responsabilidade e a falência do conselho por ter vários casos acumulados.

E que poderia ter evitado este caso?

Eventualmente se tivesse alguma pena ou fosse inibido de trabalhar. Na sequência disso tomámos decisões que acho que são importantes no sentido de dar alguma confiança à sociedade civil, nomeadamente a criação de uma competência em ecografia obstétrica diferenciada, criada no dia 16 de dezembro. Não porque não existissem normas, não só de aptidão mas tempo para as ecografias, que não podem ser feitas em cinco minutos, mas não estavam a ser cumpridas e a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo nem sabia o que estava a acontecer. Pedimos uma reunião com a ARS e com a Entidade Reguladora da Saúde, mas nós assumimos a nossa responsabilidade e as outras entidades não. É preciso haver fiscalizações, inspeções.

Já disse que não chega o gabinete de segurança para prevenir a violência contra os médicos. Que medidas defende a Ordem?

Os casos não são de agora. No início do meu mandato defendemos que deviam ser crimes de investigação prioritária e não são. A violência física configura um crime público mas não é tratado como crime público. Precisamos de medidas preventivas, protectivas e de uma atuação da justiça diferente. Se estes casos forem julgados mais rapidamente e for dada conta disso, haverá um menor sentimento de impunidade. Por exemplo, o utente que agrediu um médico na Chamusca [em 2018] foi considerado culpado e condenado a pagar uma indemnização, penso que terá sido de 7000 euros. As sentenças têm de ser dadas a conhecer. Mas quem saiu do centro de saúde foi o médico, foi trabalhar para o norte do país…

O Sindicato Independente dos Médicos defende que os agressores sejam excluídos da lista do médico de família ou consulta hospitalar e impedidos de entrar nas unidades onde foram violentos. Concorda?

Um utente agressivo ser retirado de um centro de saúde parece-me uma medida justa, na urgência não é possível. Uma urgência é uma urgência, mesmo que lá vá um criminoso que acabou de matar uma pessoa temos de o tratar. Mas no centro de saúde pode ser uma medida interessante, bem como sinalizar aqueles que reiteradamente agridem. Há países onde a agressão reiterada retira a pessoa do sistema. Penso que isto agora são medidas que a ministra deve estudar. A questão dos botões de pânico ligados a uma segurança ativa são medidas que já se demonstrou que funciona, assim como termos pontos de fuga.

Já ficou alguma vez encurralado?

Nunca me tentaram bater, mas já tive discussões fortes com doentes, não acredito que haja um médico que não tenha tido. Tive uma vez um doente que entrou com meia hora de atraso a dizer-me que era inaceitável, a apontar-me o dedo, que tinha esperado ano e meio a espera da consulta de urologia, que se tivesse um cancro se eu me ia responsabilizar. Isto é dramático para nós porque também somos seres humanos. Para o doente, sou o responsável. É preciso conseguir aguentar estes embates bem, porque às vezes o médico também já está irritado. Precisamos de formação ao nível da comunicação, da gestão de conflitos.

Formação em defesa pessoal, como também propôs o SIM?

Penso que poderá ser interessante, não para atacar mas para nos defendermos. Houve uma empresa que nos enviou uma proposta e pode ser uma hipótese haver um protocolo. É preciso ter em conta que só estas medidas nunca chegarão. Se conseguíssemos despressurizar o sistema, ter as equipas tipo que devemos ter nas urgências, havia menos problemas.

Dos casos que chegam ao vosso gabinete de apoio ao médico, o que impressiona mais?

A maioria dos casos são de burnout e sofrimento ético. E por isso digo o que mais me preocupa é o estado das pessoas. Chegam-nos relatos de exaustão, relatos de pessoas que estão sozinhas na urgência e não sabem o que fazer. Sabem que da maneira como estão a trabalhar a probabilidade de erro é maior mas se não tiverem não há urgência e vivem nesse dilema. Não pode continuar.

O debate da eutanásia vai regressar ao Parlamento. Qual vai ser a posição da Ordem?

Quando voltar a gente cá estará.

Em 2018 o bastonário e os seus antecessores manifestaram-se contra e pediram uma audiência ao PR.

Para já foi-nos pedido a pronúncia sobre as propostas do PAN, BE e PS. Como bastonário tenho de defender sempre o código deontológico, que proíbe eutanásia e distanásia. O que temos de fazer, e esse é o aspeto mais importante, é dar o máximo de informação para o debate. Não é infrequente estar em reuniões com deputados, pessoas que se vão pronunciar, e confundem ainda eutanásia, a morte a pedido num caso de doença grave, com distanásia, que é prolongar a vida de uma pessoa indevidamente, prolongar a vida de alguém numa fase terminal em que o que se deve oferecer é o máximo de conforto.

O novo juramento de Hipócrates deu mais ênfase ao respeito pela autonomia do doente, o que foi visto como uma maior abertura.

O doente tem autonomia para dizer que não quer fazer tratamentos. Um doente com cancro pode recusar um tratamento. No caso da eutanásia falamos de uma participação ativa na morte, o código deontológico proíbe.

Se a eutanásia for despenalizada, terá de haver uma dispensa para os médicos?

Esse é um dos problemas que tem havido a nível internacional. Encara-se sempre a eutanásia como um ato médico. Não é. Não faz parte de nenhum compêndio que matar uma pessoa seja um ato médico, é a antítese do ato médico. Quando se diz que dar a uma pessoa um medicamento a mata e que isso tem de ser feito por um médico, não percebo a justificação para isso. Dentro da Ordem pode haver posições diferentes e vamos ouvir as pessoas. Vamos promover debates entre os próprios médicos, e também com a sociedade civil, em que teremos o lado de quem vê vantagens na eutanásia e quem não vê.

Nunca teve um doente que lhe pedisse ajuda para morrer?

Nunca. A maior parte dos doentes quando têm uma situação grave agarra-se à vida. Só pessoas que têm limitações totais e muito tempo é que conseguem fazer uma reflexão profunda e pensar que preferiam morrer.

Mudaram-no muito estes três anos?

Estou mais velho. Nunca imaginei que tivesse um nível de stress tão grande. Uma coisa corre mal com um colégio, os médicos têm problemas num serviço…

Os médicos são muito belicosos?

Não acho que sejam muito, também há problemas entre médicos, mas sobretudo são problemas externos e o bastonário acaba por ter tudo à volta de si. É quase impossível uma pessoa não estar a pensar na Ordem. Desde há um ano que tenho um diário.

Para desabafar?

[risos] Podia ser, acalma, mas não, tenho o Google Keep onde vou organizando as coisas. Por exemplo, neste dia, coloquei aqui um pensamento do dia – ‘mais tolerância’ – e depois tarefas. Hoje já me pediram 20 coisas diferentes.

Todos os dias elege um pensamento?

Nem sempre, mas é importante.

Por vezes as críticas podem ser vistas como oposição ao Governo. Teve ou tem alguma pretensão política?

Tem sido a imagem de marca do PS colar o bastonário dos médicos a um partido político que não existe. Na Madeira sou conhecido por ser do PS, no continente agora sou do PSD, quando estava o dr. Paulo Macedo era conhecido por ser do PS. A nossa atitude perante o Governo não tem nada a ver com o Governo em si. Contrariamente àquilo que as pessoas que não têm gosto no SNS vêm dizer, abafarmos e dizermos que tudo está bem quando não está bem não é defender o SNS. Isso é destruir o SNS. Não tenho nenhuma ambição política.

É um nunca?

Não estou inscrito em nenhum partido político e nunca estive. Já votei no PS e no PSD. E já votei noutros partidos. Não tenho um partido e normalmente sou criterioso a analisar os programas. Nunca mais me esqueço que a dra. Catarina Martins, não nestas eleições mas nas anteriores, propôs para o SNS 8,5% do PIB. Leio as coisas, fartei-me de os chatear com isto: então e depois aprova-se orçamentos com 4,8% do PIB para a Saúde?

A geringonça fez mal à Saúde?

Não diria que fez mal, mas não puxou pela Saúde. A geringonça, o PCP e o BE, tinham obrigação de exigir mais investimento para a Saúde.

Prefere esta configuração?

Para a Saúde o que prefiro é o que o Presidente da República prefere. Já há uns anos que diz que a Saúde atravessa um período difícil e é preciso um pacto de Estado, que depende muito do PS e do PSD. Historicamente, foram os partidos que governaram, ainda que o PAN esteja a crescer.

Marcelo já não fala do pacto há algum tempo. Não é uma utopia?

Penso que é possível haver um entendimento entre os partidos políticos, entre todos preferencialmente, mas pelo menos entre os partidos que têm possibilidade de ser governo de hoje para amanhã, para termos políticas estáveis, reformas de fundo que não têm sido feitas, mesmo reforma dos cuidados primários. Voltamos ao início, o que tem sido feito são medidas avulso. Vão-se fazendo experiências. Hospitalização domiciliaria, é excelente, mas neste momento não temos condições para ter muitos doentes neste modelo porque isso também implica recursos.

Vai manter a consulta no S. João?

Sim, é fundamental.

Porquê?

Sou médico e porque como não tenho ambições políticas, quando terminar o meu mandato quero continuar a ser médico.

Já terá passado os 60, será já a pensar na reforma?

Não, a pensar em tratar e operar doentes.

É daqueles que quer chegar aos 80 a operar?

Disso já não sou grande adepto. Conheço pessoas com 80 anos que estão muito bem, o dr. Gentil Martins está impecável e tem 90, não treme, mas acho que temos de ter noção de que a partir de certa altura as nossas capacidades não são as mesmas. Claro que se a pessoa se sente bem deve continuar a trabalhar e o trabalho é muito importante na nossa vida. Trabalharei até ao limite, mas gostava de fazer outras coisas.

É um melómano e gosta de viajar.

Sim. Música anda sempre comigo, ainda há pouco estava a ouvir Miles Davis.

O que escolhe para relaxar? A ministra da Saúde disse numa entrevista no ano passado que ouvia o hino da GGTP.

Quando estou muito irritado gosto de ouvir música clássica, Beethoven, Mozart, mas recorro sempre ao jazz, tenho as listas no Spotify.

É muito tecnológico.

Uma pessoa tem de se adaptar à realidade. Quando era novo corria os concertos todos, às vezes fora do país.

Toca? Há muitos médicos com a veia musical.

Tenho trompete mas não toco, consigo tocar qualquer coisa mas nada de especial. Teria de ter começado mais cedo. Mas a música tem várias vertentes positivas, uma delas é que nos torna mais humanos, faz bem à saúde mental.