Auschwitz. ‘Estava sempre 
sentada à mesa 
da nossa cozinha’

No 75.º aniversário da libertação do infame campo de concentração, é publicado o único livro integralmente escrito no local. Em entrevista, o filho do autor diz-nos que o pai nunca ultrapassou o trauma.

Auschwitz. ‘Estava sempre 
sentada à mesa 
da nossa cozinha’

Eddy de Wind (1916-1987) estava em Auschwitz há exatamente 75 anos quando o campo foi libertado pelo Exército Vermelho. Depois de ter sobrevivido mais de um ano naquele inferno, escapou às esgotantes ‘marchas da morte’ onde muitos pereceram. Nos meses seguintes, continuou em Auschwitz como médico, a pedido dos russos, e registou num caderno o único relato, até hoje, integralmente escrito no infame campo de concentração. Olivro, que foi publicado em 1946 na Holanda, mas sem sucesso, acaba de ser reeditado em Portugal pela Planeta.

Além de uma história de sobrevivência, Última Paragem Auschwitz conta também uma história de amor: Eddy acabara de casar com Friedel quando deram entrada no campo em setembro de 1943. Por sorte, ambos sobreviveram e retomaram a vida em comum depois da guerra. Mas acabariam por separar-se eEddy, que se tornara psiquiatra especializado em lidar com traumas como o seu, casou novamente e teve três filhos. Um deles é Melcher de Wind, com quem conversámos por email.

Que idade tinha o Melcher quando soube que o seu pai tinha passado por esta experiência tremenda?
Não me lembro de quando ouvi falar de Auschwitz pela primeira vez; simplesmente estava lá. Era um facto. E depois havia muita coisa que faltava – como a família. Como a minha mãe costumava dizer, Auschwitz estava sempre sentada à mesa da nossa cozinha. E o caderno [com o manuscrito do livro] estava sempre numa prateleira da sala, com outros livros. Eu costumava tirá-lo da prateleira e folheá-lo, mas acho que só o li realmente primeira vez quando tinha 18 anos e estava a preparar-me para estudar História na universidade.

Os anos que o seu pai passou em Auschwitz deixaram-lhe marcas físicas?
Só na medida em que nunca mais pareceu uma pessoa feliz. Havia sempre uma nuvem à volta dele e o brilho dos olhos tinha desaparecido.

O escritor espanhol Jorge Semprún, que também passou por um campo de concentração (Buchenwald), escreveu que «a maior parte dos sobreviventes, como fantasmas, não diz nada». O seu pai falava-lhe a si e aos seus irmãos sobre aquilo por que tinha passado em Auschwitz?
O meu pai falava muito comigo sobre Auschwitz. Mas fazia-o de uma maneira peculiar, sem olhar para mim, por exemplo enquanto estava a conduzir. Eu praticamente não precisava de fazer perguntas. E uma vez disse-me que, por muito horríveis que as histórias de Auschwitz pudessem ser, as fantasias e os pesadelos das crianças eram muito piores. Achava que por muito difícil e doloroso que fosse falar sobre Auschwitz, era algo que ele tinha de fazer. Mas nem sempre conseguia. Vou dar um exemplo. Uma vez o meu pai perguntou-me o que eu estava a ver na televisão. Era um filme de zombies e eu expliquei-lhe que era uma história sobre mortos-vivos, que se infetavam uns aos outros. Ele saiu do quarto a chorar. Percebeu que ele próprio era um zombie que se tinha erguido dos mortos.

E sobre a vida antes de Auschwitz, costumava falar?
Não muito. Era algo demasiado emotivo para ele. Lembro-me de uma vez termos visitado a rua onde ele nasceu. Começou a chorar antes sequer de entrarmos na rua e já não conseguiu dizer mais nada.

O seu pai trouxe de Auschwitz alguma recordação que lhe lembrasse a sua vida no campo de concentração?
Quando regressou aos Países Baixos em junho de 1945, cinco meses depois da libertação de Auschwitz, ele trouxe várias coisas do campo de concentração consigo. Um uniforme do Exército Vermelho, o caderno [do manuscrito] e um clarinete. O uniforme perdeu-se nos anos a seguir à guerra, já não o temos. Quanto ao clarinete, o meu pai era músico de jazz e tocava muito com ele. O caderno está finalmente a ser publicado em todo o mundo.

O seu pai atribuía algum significado especial à tatuagem com o número de prisioneiro?
Não. Depois da guerra ele removeu a tatuagem.

Foi fácil para si e para os seus irmãos crescer com um pai que era um sobrevivente do mais famoso campo de concentração?
Nem sempre. O meu pai de vez em quando tinha de ser hospitalizado. Auschwitz provocou mais sofrimento do que algum ser humano consegue ultrapassar numa vida. E infelizmente o trauma não pára nos sobreviventes. Muitas vezes os seus filhos também ficam traumatizados pelas histórias e pela dor dos seus pais. Mas de uma forma diferente. Os sobreviventes tiveram de passar pela terrível experiência de despersonalização assim que chegaram aos campos e de terem de aceitar que basicamente estavam mortos. Os filhos dos sobreviventes nasceram e cresceram num ambiente onde a dor e o medo eram a normalidade. Pela minha experiência posso dizer que é preciso muita força de vontade para desenvolver uma personalidade própria e ultrapassar o trauma.

Muitas pessoas que passaram por campos de concentração, nomeadamente o escritor judeu Elie Wiesel, referiram-se ao cheiro macabro a carne queimada. Esse cheiro também foi marcante para o seu pai?
Sim, ele escreve sobre isso. Compara-o ao cheiro de um bife cozinhado numa frigideira, mas sem gordura.

A certa altura do livro, Friedel [a noiva do protagonista] diz-lhe: «Tens de pensar em mim, porque é a única maneira de aguentares». Acha que foi ela que deu ao seu pai um propósito pelo qual valia a pena suportar o sofrimento e continuar a lutar pela sobrevivência?
Sobreviver foi sobretudo uma questão de sorte. A maioria das pessoas que chegavam a Auschwitz eram mandadas diretamente para as câmaras de gás. Mesmo que se tivesse a sorte de ser selecionado para trabalhar, as hipóteses de sobreviver eram mínimas. Muito poucos conseguiram viver mais do que alguns meses em Auschwitz. No livro, o meu pai conta como esteve perto de morrer várias vezes. Mas ter alguém para amar e por quem continuar vivo foi crucial para ele, deu-lhe um motivo para nunca desistir.

O seu pai alguma vez sugeriu que preferia não ter sobrevivido ao campo de concentração?
Muitos sobreviventes tiveram aquilo a que se chama ‘a culpabilidade do sobrevivente’. Perguntavam-se: ‘Porque é que eu sobrevivi e todos os outros morreram?’. Nos primeiros dias depois de os alemães terem partido, o meu pai sentiu algo que eu descreveria, no entanto, como ‘a inveja da vítima’: ele invejava aqueles que tinham morrido e não tinham de passar pela dor que ele sentia. A dor do trauma, a tomada de consciência de que todos os que conhecia tinham sido assassinados e a solidão daí decorrente, etc. Nesses primeiros dias ele desejou morrer.

A escrita deste livro foi uma forma de conseguir lidar com o que tinha vivido?
Não julgo que escrever esta história o tenha ajudado a ultrapassar o trauma. As feridas mentais eram demasiado profundas. Costumo ilustrar esta ideia com uma história que se passa quando ele estava no leito de morte. Depois de ter um ataque cardíaco, o meu pai foi internado no hospital. E pensava que estava no campo. Pânico total, confundiu as enfermeiras com homens das SS. Se alguém morria naquela enfermaria, ele ficava confuso e chorava compulsivamente, porque em Auschwitz quando alguém era escolhido para morrer havia outra pessoa que podia viver mais um dia. Isto intensificou a sua culpabilidade de sobrevivente.

O narrador deste livro a certa altura diz: «Todo o povo alemão é culpado». O seu pai era um homem revoltado, amargurado? Chegou a perdoar aos alemães o que eles tinham feito?
O meu pai não era uma pessoa azeda, nada disso. Ele sempre achou que o povo alemão era altamente humanista e tolerante. O período nazi foi um momento de cisão na história alemã, uma espécie de parêntesis. E o meu pai levou-me muitas vezes à Alemanha. Para me ensinar a não odiar.