A misteriosa insurreição jihadista em Cabo Delgado

No norte de Moçambique há cada vez mais aldeias vazias. Os habitantes fogem para cidades como Pemba, cujo bispo foi criticado por denunciar a situação. Os ataques ‘têm-se intensificado, ao contrário do que passou para a sociedade’, conta Dom Luiz Fernando Lisboa.

Há mais de dois anos que Cabo Delgado, uma província de maioria muçulmana no norte de Moçambique, muito rica em recursos naturais, enfrenta uma misteriosa insurreição de extremistas islâmicos, que ganhou novas dimensões nas últimas semanas: o saldo vai em mais de 350 mortos e dezenas de milhares de deslocados. «A população está assustada de tal maneira que se ouvir um tiro sai tudo para o mato», conta Dom Luiz Fernando Lisboa, bispo de Pemba, sede da província, onde chegam cada vez mais refugiados. «Há muitas aldeias vazias, outras com menos pessoas porque fugiram para as vilas, que também estão sendo atacadas», explicou o bispo. Está sempre presente o receio de uma crise alimentar, após uma época de seca no sul do país e chuvas fortes no centro e norte, no rescaldo dos ciclones Idai e Kenneth. «Muita gente não está a plantar porque fugiu», lamenta.

O mais recente ataque foi no distrito de Quissanga, esta semana: sete pessoas foram decapitadas, segundo a Carta de Moçambique. Logo no início do ano, no mesmo distrito, foram destruídas habitações e edifícios públicos, incluindo o Instituto Agrário de Bilibiza, que faz parte da Rede de Desenvolvimento Aga Khan – é a única escola secundária técnica em Cabo Delgado. Os cerca de 400 alunos da instituição estavam de férias, mas «vão ficar sem aulas, pelo menos por um tempo», nota o bispo de Pemba.«Como é que os pais vão ter confiança para mandar os seus filhos para lá?».

Por agora, em Cabo Delgado, as estradas já não são seguras e multiplicam-se os ataques a postos policiais e aldeias. «Têm-se intensificado, ao contrário do que se passou para a sociedade», alerta Dom Luiz. As suas denúncias valeram-lhe ferozes críticas na imprensa. «Bispo semeia ódio», foi a manchete do jornal moçambicano O Público, que acusou o sacerdote brasileiro de incitamento à violência, desunião e desrespeito aos símbolos nacionais: chegaram a exigir a sua expulsão do país, segundo a DW.

«Nós não podemos ficar quietos quando a população está a morrer», defende o bispo, cujos missionários «correm riscos mas estão lá», a acompanhar a situação no dia-a-dia. «Os mais pobres não têm acesso a quase nada. Se nós podemos emprestar voz, nós fazemos isso», garante. E no que toca a Cabo Delgado, uma província com quase a área de Portugal, «há um certo véu de secretismo. Não se pode e não se deve falar, infelizmente», diz Dom Luiz. Face a quaisquer calúnias ou tentativas de intimidação, «a Igreja não pode silenciar a sua voz».

 

Secretismo e teorias

«Há muitas teorias em Moçambique», quanto à identidade e objetivos do grupos armados que semeiam o terror na região, afirma o bispo de Pemba – o Estado Islâmico reivindicou alguns dos ataques, mas os analistas concordam que não há uma relação direta. «Eu acredito que o que está por trás é o poder económico. É a questão dos recursos naturais que tem motivado toda esta situação», considera. «Além do gás natural e do petróleo, temos pedras semipreciosas e rubis da melhor qualidade. Temos ouro, grafite e mármore. São muitos os recursos», explica Dom Luiz. «Dá impressão que querem desocupar esta área toda, com esses ataques, com essas mortes».

É no norte de Cabo Delgado que estão concentradas as gigantesca prospeções de gás natural liquefeito, de multinacionais como a Total ou a ExxonMobil – que planeia investir mais de 500 milhões de dólares (cerca 455 milhões de euros) só na fase inicial do seu projeto. Estas empresas pediram a semana passada ao Governo moçambicano que aumente os seus efetivos na região, de 500 para 800 soldados, segundo a Reuters. Maputo prontamente aceitou: «O Governo está a fazer tudo para que estas multinacionais, incluindo os seus trabalhadores, possam operar com tranquilidade», declarou o ministro da Defesa, Jaime Neto.

Foi também no norte da província que houve os primeiros ataques, em 2017, contra a cidade costeira de Mocímboa da Praia. «É uma área que não dá para chegar muito, é difícil ter informações seguras», explica Dom Luiz: a sede da sua diocese fica a cerca de 345 km de Mocímboa da Praia, mais do que de Lisboa ao Porto. Não ajuda que várias pontes tenham sido derrubadas pelas chuvas, além da instabilidade e dos ataques de insurgentes. «Mas as empresas [multinacionais] de lá também têm segurança privada, não se pode andar de qualquer maneira. As pessoas têm medo», acrescenta. Foi noticiada a crescente presença de mercenários estrangeiros na região, em particular os russos da Wagner.

«Uma pequena parte da população está sendo beneficiada – pode ser que futuramente beneficie toda a província e o país, são muitos recursos – mas o arranque tem sido muito duro», afirma Dom Luiz. Ainda em agosto, várias ONG locais assinaram uma carta conjunta, criticando «a pobreza generalizada que coexiste com grandes mas frustradas expectativas sociais, que geram conflitos».

O realojamento das populações na área de prospeção foi algo «caótico, em que o Estado parece estar aliado ao grande capital, piorando os níveis de pobreza» em Cabo Delgado, lê-se na carta das ONG. «Houve muito, muito barulho», recorda o bispo de Pemba. «O povo não tem quase nada. E o que tem está a perder. A vida também».

 

‘Al-Shabaab’

Afinal, quem são os grupos armados, sem nome ou líder conhecido, que aterrorizam Cabo Delgado? Os habitantes chamam-lhes Al-Shabaab, «a juventude», em árabe: o mesmo nome dado aos extremistas islâmicos que controlam boa parte da Somália. Apesar de não haver provas de uma relação direta entre os dois grupos, «no imaginário local, aquela violência é muito semelhante ao que ouviam da Al-Shabaab na Somália, Quénia e Tanzânia», mesmo ali ao lado, explica Salvador Forquilha, um dos autores do relatório ‘Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique’, de 2019. Apesar dos paralelos, «as pessoas não se entendem quanto às origens e causas», nota o diretor do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE).

«Mais de dois anos depois do começo do conflito armado, temos várias interpretações», explica Forquilha. Uma, adotada pelo Governo, «prefere ver o fenómeno como uma conspiração de forças externas, hostis ao desenvolvimento de Moçambique» – apesar de ultimamente Maputo admitir que possam haver financiadores internos e externos. «A segunda interpretação, que encontramos muito, é que o conflito está ligado ao problema das terras, tendo os recursos naturais abundantes como pano de fundo». Aliás, no relatório de Forquilha lê-se que boa parte do financiamento da Al Shabaab vem de redes de tráfico de rubis, marfim e madeira, vendidos sobretudo a compradores tanzanianos ou chineses.

A terceira perspetiva, em que o IESE se tem baseado nos seus estudos, «tem a ver com o que chamamos jihad, no contexto da região». Ou seja, salienta a predominância de atores locais na Al Shaabab, mas também semelhanças com os extremistas no Mali, com o surgimento do Boko Haram na Nigéria ou os conflitos na vizinha Tanzânia, maioritariamente muçulmana. «As dinâmicas dos dois lados da fronteira são muito semelhantes», nota Forquilha. «A ligação entre a Tânzania e Cabo Delgado é muito forte e já vem de há séculos».

As três visões mencionadas pelo investigador não são contraditórias: todas podem conter um grão de verdade. Mas ninguém tem dúvidas que a situação económica seja um potente combustível para a insurreição. «Estão levando os nossos jovens com promessas, com dinheiro na mão», lamenta o bispo de Pemba. «Vivem uma situação muito difícil nas aldeias. Há pouco emprego, em muitas localidades não há hipótese de continuação dos estudos», explica Dom Luiz. «Os jovens ficam à mercê do que aparece».

 

Radicais recrutam os pobres

Desde 2010 que líderes muçulmanos de Cabo Delgado, mas também de Nampula, alertam para pequenos grupos religiosos, que pregavam uma visão extremista do islão, o chamado wahhabismo. Segundo o relatório do IESE, alguns teriam relações indiretas a líderes sauditas, líbios, sudaneses ou argelinos, através de vídeos ou bolsas para estudar nesses países. Destacavam-se por andarem sempre com facas ou catanas, como símbolo da jihad, pelo cabelo rapado e barba grande. Mas também por só educarem os filhos em escolas corânicas construídas por eles e apelidarem de kaffir – ou descrente em árabe – os líderes islâmicos tradicionais.

Estes estiveram entre os primeiros alvos dos extremistas. «Já perdemos muitos líderes comunitários, foram mortos nos ataques. Não foram só cristãos, foram cristãos e muçulmanos», conta Dom Luiz. «Não é uma perseguição aos cristãos, não é. Como é queimada uma capela, é queimada uma mesquita», faz questão de salientar.

«Inicialmente o grupo [Al-Shabaab] foi concebido por gente com algumas posses financeiras, não era gente necessitada», afirma o diretor do IESE. «Eram homens de negócios, controlavam o comércio local». Através disso recrutavam jovens pobres, atraindo-os «com esquemas de empréstimos, uma espécie de microcrédito», conta o investigador. Radicalizavam-nos progressivamente: punham-nos em contacto com líderes religiosos extremistas, alguns da Tanzânia.

Com o início do conflito armado, a Al-Shabaab começou também a recrutar combatentes estrangeiros. Vindos do Uganda, Tânzania ou da região dos Grandes Lagos, trouxeram «uma larga experiência de violência e do mundo do crime», assegura Forquilha. «Os dois fenómenos andam juntos». Entretanto, a insurreição em Cabo Delgado continua a evoluir, sem fim à vista.