O caldo entornado…

Lucília Gago já não se livra da fama de querer ‘dobrar a cerviz’ aos magistrados.

Está o ‘caldo entornado’ no Ministério Público, depois da publicação de uma diretiva, assinada pela atual procuradora-geral da República, submetendo os magistrados não apenas ao vínculo formal da hierarquia como a ordens não escritas.

Percebe-se agora melhor porque não foi reconduzida a anterior PGR, Joana Marques Vidal, com um notável currículo e trabalho desenvolvido, designadamente, na luta contra a corrupção.

A atual procuradora, uma magistrada oriunda da área do Direito de Família, lançou a cizânia na ‘família’ dos procuradores, cujo sindicato reagiu com uma invulgar contundência.

Não há memória, aliás, de uma diretiva da PGR ter incendiado tanto os seus pares, embora a crónica do Ministério Público já registe outros episódios relacionados com a independência dos magistrados.

Dir-se-á que foi uma manifestação corporativa assanhada; mas reconheça-se que, neste caso, o sobressalto teve razão de ser.

Ao suspender a publicação da diretiva, Lucília Gago terá reconhecido o erro, embora procure respaldo num «parecer complementar» do Conselho Consultivo do Ministério Público. Mas a PGR já não se livra da fama de querer ‘dobrar a cerviz’ aos magistrados, ao invés do que fez a sua antecessora, que valorizou a autonomia do MP, sem deixar de ‘chamar à pedra’ os titulares dos processos, quando foi caso disso, mas às claras e não às escondidas.

Lesto, Marcelo Rebelo de Sousa voltou ao seu papel de ‘pronto-socorro’ nas aflições – como tem acontecido com António Costa –, resolvendo elogiar Lucília Gago por esta ter dado um passo atrás, para «esclarecer dúvidas, que eram muitas e existiam».

A ser assim, não se percebe porque ficou o Presidente silencioso perante a diretiva, como se nada se passasse, só intervindo depois de o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público ‘partir a loiça’, secundado por alguns partidos. É um mistério.

Ao tempo de Sócrates – ungido pelo PS, que andou com ele ao colo –, a Justiça caiu no ‘regaço’ dos seus governos.

Foi decerto graças à excelência dos laços criados que pudemos ver mais tarde o antigo PGR, Pinto Monteiro, bem como o ex-presidente do Supremo, Noronha do Nascimento, sentados na primeira fila na sessão do lançamento do livro de que Sócrates se diz autor, A Confiança do Mundo – Tortura em Democracia, luzida cerimónia que contou, também, com as presenças de António Costa e Ferro Rodrigues.

Por causa dessa obra – comprada por ‘atacado’ nas livrarias, às ordens do alegado autor, para simular um bestseller – está agora o professor avençado de Sócrates a contas com a Justiça.

É esse ambiente turvo da Justiça, cujo regresso se teme, que convém evitar.

A realidade é que a diretiva de Lucília Gago foi recebida com estrondo e perplexidade pelo sindicato do setor – e, à exceção do PS e do Livre (vá lá perceber-se porquê…), houve da esquerda à direita um repúdio generalizado ao documento, por existir o receio de que encubra a politização e uma quebra grave da autonomia do MP.

A polémica está lançada, com Tancos de permeio, por muito que custe ao Governo e aos seus comentadores avençados.

Aparentemente, a atual PGR ultrapassou as linhas vermelhas ao preconizar que os magistrados, além da subordinação hierárquica, devem acatar as instruções diretas dos seus superiores sobre processos criminais que lhes estejam distribuídos, sem que fiquem vestígios nos autos.

Desde o risco de violação do Estado de Direito à ofensa à legalidade, ou à transformação dos magistrados em ‘marionetas’, ouviu-se de tudo a propósito desta diretiva. Lucília Gago ainda esgrimiu que o parecer não atribui à PGR «poderes acrescidos de intervenção direta em processos», enfatizando que os magistrados conservam a faculdade de «recusar ordens ilegais». Mas o mal estava feito.

Silencioso, o PS ficou na defensiva. Compreende-se. A sucessão de casos de âmbito criminal nas suas hostes embaraça o partido.

O mais problemático é, sem dúvida, o processo de Sócrates, nas mãos do juiz Ivo Rosa, enquanto Armando Vara cumpre pena e outros estão em fila de espera. Por azar, até António Vitorino apareceu na berlinda, com honras de imprensa espanhola.

Por fim, também António Costa, talvez incomodado com as 100 perguntas do juiz Carlos Alexandre, resolveu publicar as suas respostas no site do Governo, sem cuidar da eventual violação do segredo de Justiça.

Ou seja, o PS tem uma relação complicada com a Justiça. E o atual PSD, de Rui Rio, não lhe fica atrás, defendendo a sua reforma urgente, a pretexto de «traços marcantes de corporativismo» e falta de escrutínio público.

Resta saber se Rio e Costa concordam com a ‘domesticação’ do Ministério Público, para poupar os ‘telhados de vidro’ de alguns políticos… E não só.