O nosso modo de vida acabou

“Sentindo-se inseguras, as pessoas começarão a desejar governos fortes, pulsos firmes, autoritários, musculados. E não há dúvida de que, em momentos de aflição, as ditaduras funcionam melhor do que as democracias”

As pessoas estão metidas em casa – as que podem – esperando que o vírus passe.

E todas acreditam que, quando a epidemia passar, daqui a dois ou três meses, tudo voltará ao normal.

Ora isso, infelizmente, não vai acontecer.

O nosso modo de vida vai mudar radicalmente.

Nada voltará a ser como dantes.

Pensemos nos restaurantes De um momento para o outro ficaram vazios.

Perante isso, muitos decidiram fechar as portas: para quê manter a cozinha a funcionar, o serviço de mesas a funcionar, para meia dúzia de clientes?

E os que ainda o não tinham feito fizeram-no por força do estado de emergência – e poucos se adaptarão tão cedo aos novos moldes de funcionamento.

Ora, o que farão aos empregados: continuarão a pagar-lhes, despedi-los-ão ou recorrerão à ajuda especial do Estado?

Se continuarem a pagar-lhes, nalguns casos haverá falências, até porque não se sabe quanto tempo isto irá durar; mas o dinheiro do Estado não chegará para tudo…

E os fornecedores dos restaurantes, o que será deles? Sem clientes, pararão.

E com os bares e os fornecedores dos bares vai acontecer o mesmo: fecharão as portas e deixarão de laborar.

E a maior parte do comércio com porta para a rua, mesmo aquele que não foi obrigado a encerrar, seguirá este caminho: com as pessoas fechadas em casa, para quê manter a porta aberta? 

E com os quiosques, as papelarias e as livrarias fechadas, reduzir-se-ão brutalmente os locais para comprar jornais, revistas e livros.

E toda esta indústria tenderá a parar: redações, tipografias, distribuidoras, fornecedores de papel…

E, claro, tudo o que é espetáculo parou.  O cinema, o teatro, os concertos, as touradas, o futebol.

O caso do futebol é particularmente grave, pois constituía uma poderosíssima indústria. 

Para já, este campeonato de futebol e a Taça de Portugal dificilmente chegarão ao fim.

E, sem jogos, não há transmissões televisivas, que eram uma das principais fontes de receita dos clubes; sem jogos, também acabam as receitas de bilheteira e os patrocínios; e os sócios a pouco e pouco desistirão: para quê ser sócio de um clube se não há jogos para ver?

E como poderão os clubes sobreviver durante meses sem receitas televisivas, sem receitas de patrocínios, de bilheteira, de quotização, de merchandising?

Com que dinheiro continuarão a pagar salários milionários a jogadores e treinadores?

E o que vai suceder a todo o negócio que gira à volta do futebol: as estações desportivas de televisão, como a SportTV, os programas desportivos que ocupavam praticamente todas as noites dos canais de informação, os jornais desportivos, etc.? 

E toda esta gente – cameramen, locutores, comentadores, jornalistas – vai fazer o quê?

E, de uma forma geral, as pessoas ligadas à área do espetáculo como irão sobreviver?

Os cantores, os atores, os bailarinos, os elementos das orquestras, os operadores de som e de luz… 

E as gravações de telenovelas vão continuar, sabendo-se que abundam as cenas íntimas?

E todo o pessoal ligado às viagens e ao turismo? 

O comércio internacional vai reduzir-se brutalmente; e as viagens de lazer, bem como os cruzeiros, foram canceladas.
Como vão viver as pessoas ligadas ao setor?

O pessoal das agências de viagens, dos portos e aeroportos, as tripulações de barcos e aviões, os guias turísticos, as empresas de catering?

E o que será do pessoal das muitas fábricas que já pararam, seja por razões de segurança, por falta de matérias-primas ou porque as encomendas não justificavam que se mantivessem em laboração?

Enfim, é um mundo de questões que de repente desaba sobre nós sem respostas à vista. 

O leitor já percebeu que vai haver uma vaga gigantesca de desemprego, que o Estado não terá condições para suportar.

Não haverá dinheiro para pagar tudo: aos desempregados, aos que vão para casa cuidar dos filhos, aos reformados.
Com o desemprego, as receitas do Estado diminuirão bruscamente – e, portanto, a capacidade do Governo para cumprir os compromissos diminuirá na mesma medida.

Dificilmente não haverá fome… 

É impossível neste momento avaliar toda a extensão da catástrofe.

E não se pense que, quando o vírus passar, tudo recomeçará a funcionar como por milagre.

Há muita empresa que faliu e não voltará a abrir as portas.

Em todas as áreas. 

Muita coisa recomeçará do zero.

Por outro lado, os nossos hábitos mudaram.

E instalou-se o medo – que perdurará por muito tempo. Recorde-se a repulsa que os ratos ainda hoje causam, vários séculos após as pestes.

No contacto humano, vamos ser muito mais contidos.

Tão cedo não haverá beijinhos, nem abraços, nem mesmo apertos de mão.

Tudo o que implique grandes concentrações de gente – futebol, concertos, feiras, manifestações políticas, celebrações religiosas – será evitado. 

As relações sexuais esporádicas e a prostituição levarão uma grande pancada.

A vida das famílias também vai mudar.

O medo das aglomerações levará muito mais crianças a ficar em casa até à idade escolar, obrigando um dos membros da família a não trabalhar. 

A xenofobia e o racismo crescerão, pois tudo aquilo que nos é estranho passará a ser visto com desconfiança. Note-se que as lojas chinesas foram as primeiras a fechar. Qualquer oriental será olhado como potencial portador de um vírus esquisito.

As pessoas vão estar ainda mais tempo ao computador e as redes sociais vão ter um incremento brutal. 
Muita gente desenvolverá doenças mentais, porque o isolamento potencia esses problemas.

Mas nem tudo são más notícias.Os canais de televisão informativos verão aumentar muito as audiências, embora percam publicidade, porque ninguém agora anuncia nada. 

As empresas de distribuição ao domicílio também se desenvolverão bastante. Haverá que levar tudo a casa das pessoas: comida, produtos de mercearia, jornais, eventualmente livros, filmes e outros entretenimentos. 
Os grandes hospitais darão lugar a unidades mais pequenas e vulgarizar-se-á o internamento em casa.
O teletrabalho também sofrerá um grande empurrão – e as empresas onde ele for agora implementado com sucesso poderão adotá-lo em definitivo. 

As crianças estarão mais tempo com os pais em casa.

Além disso, a globalização arrepiará caminho, o que para mim é uma vantagem.

A globalização globaliza o bem e o mal.

Doenças que estão circunscritas a determinadas regiões espalham-se rapidamente por todo o globo. 

Já vimos isso com a gripe A (H1N1), agora é o covid-19, amanhã será outra doença qualquer. Se não travarmos a circulação descontrolada de pessoas, as pandemias serão cada vez mais frequentes. 

Reduzir-se-ão as viagens de férias para destinos estranhos como o Vietname ou o Camboja. 

As fronteiras tenderão a ser mais vigiadas – e Schengen será uma memória progressivamente mais distante.
Com as limitações às viagens, deixará de haver tanta circulação de mercadorias. 

Parar-se-á um pouco o consumo desenfreado – e, ao mesmo tempo, as produções brutais que nunca serão vendidas e causam imensa poluição. 

E, já agora, esfriará a ‘reunite aguda’, a mania das reuniões portudo e por nada, que só causam perdas de tempo.

Paradoxalmente, se não houver uma travagem na globalização, a democracia poderá estar em risco, mesmo na Europa.

Sentindo-se inseguras, as pessoas começarão a desejar governos fortes, pulsos firmes, autoritários, musculados.
E não há dúvida de que, em momentos de aflição, as ditaduras funcionam melhor do que as democracias: veja-se o modo como a China conseguiu dominar a doença, em circunstâncias aparentemente muito mais desfavoráveis.
Enfim, muita coisa vai mudar.

O nosso modo de vida acabou.

Haverá um antes e um depois do coronavírus.