O país de Costa é diferente do dos profissionais

Primeiro-ministro disse esta semana que não faltou ainda nada às unidades de saúde. Uma visão que não bate certo com a dos médicos, que em alguns casos fazem de sacos proteção.

Fatos de proteção improvisados, viseiras húmidas porque o álcool ainda não tivera tempo de secar, uma máscara que não se muda durante 12 horas, ou um turno – estes são apenas alguns dos relatos feitos pelos profissionais de saúde que se foram multiplicando na última semana. Médicos, enfermeiros e auxiliares garantem que falta material nas unidades de saúde, mas este retrato contrasta com as apalavras do primeiro-ministro António Costa, logo no início da semana, em entrevista à TVI: «Até agora não faltou nada e não é previsível que venha a faltar nada». Já esta sexta-feira, o primeiro-ministro disse ao país que chegaram milhares de equipamentos de proteção individual – como máscaras, cobra botas e fatos.

As palavras de António Costa não caíram bem aos profissionais, e os respetivos bastonários, numa carta conjunta – entre Bastonário da Ordem dos Médicos, Bastonária da Ordem dos Enfermeiros e Bastonária da Ordem dos Farmacêuticos – descreveram ao primeiro-ministro que «às três associações profissionais continuam a chegar milhares de relatos de situações muito difíceis». «A falta de equipamentos de proteção individual está a contribuir para que entre o número de infetados, ou de pessoas colocadas em quarentena por contacto com caso positivo, estejam muitos profissionais de saúde», escreveram os bastonários, acrescentando que «neste momento, são várias as falhas de segurança, faltando desde máscaras, a luvas, fatos de proteção e desinfetantes alcoólicos, o que é extensível à rede de farmácias».

A falta de material de proteção e de combate ao novo coronavírus traduz-se na exaustão dos profissionais que utilizam, muitas vezes, as redes sociais para dar conta da realidade que se vive dentro dos hospitais. Um desses relatos chegou de uma profissional de saúde que, depois de uma urgência de 24 horas na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) para doentes infetados por covid-19, explicou como se vive na linha da frente: «O trabalho em UCI é particularmente penoso sob as condições impostas pelos fatos de proteção, sendo as mesmas agravadas quando os referidos fatos são ‘fabricados’ com recurso a materiais improvisados menos próprios».

Além da escassez de fatos de proteção, nesta unidade de saúde, em Faro, faltam também as viseiras – necessárias para proteger o rosto. Aqui, são os próprios profissionais a adquirir as suas viseiras. No entanto, este material deixou de estar disponível em loja e os profissionais desinfetam, constantemente, as que têm. «Como temos poucas, temos utilizado ainda húmidas de lixivia», acrescentou. Mas as falhas continuam: «Também não temos proteções para os pés e pernas e estamos a utilizar sacos do lixo para esse efeito. Ao fim de duas horas, os pés ficam molhados». O apelo desta profissional de saúde dirige-se aos que têm este tipo materiais em casa para que os ofereçam à UCI do Hospital de Faro.

A falta de máscaras, por exemplo, levou também os hospitais a tomar medidas excecionais. No Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, médicos, enfermeiros e auxiliares, receberam esta semana a informação de que teriam apenas uma máscara cirúrgica a cada 12 horas. O mesmo procedimento foi aplicado pelo Hospital de Évora, onde os funcionários recebem uma máscara cirúrgica por turno.

Sobre esta realidade, Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos enfermeiros, reconheceu ao jornal i a dificuldade em abastecer e sublinhou que a falta de material é transversal a várias a unidades. Defendeu ainda que a solução tem de passar no imediato por encontrar estratégias a nível nacional mobilizando a indústria. Também Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, referiu que «apesar de ter havido a garantia de que chegariam novas encomendas esta semana, ainda não [tinha chegado]». «Os equipamentos de proteção faltam em vários pontos do país e em larga escala, não só nos hospitais, mas nas farmácias, algumas sem desinfetante», acrescentou o bastonário.

 

Médicos queixam-se e a administração critica-os

No Centro Hospitalar do Médio Tejo, surgiram também, esta semana, pedidos de ajuda nas redes sociais. No entanto, esta sexta-feira, a administração do centro hospitalar desmentiu os retratos feitos, sobretudo por médicos, e pediu desculpa «por alguma insegurança que os mesmos pedidos possam ter suscitado». Em comunicado, o Conselho de Administração explicou que os materiais de proteção estão a ser  utilizados «de forma muito racional e muito ponderada», tendo em conta «uma gestão muito mais rigorosa dos stocks, pois não se sabe a intensidade da pandemia nem o tempo que a mesma vai durar».

A administração do Centro Hospitalar do Médio Tejo lamentou ainda que os profissionais de saúde, «que deviam ser os mais responsáveis pelos comentários públicos que fazem, não saibam utilizar de forma mais responsável as redes sociais, num momento tão sensível de saúde pública para a população».

Mas denúncias não faltam. Um médico de um dos hospitais da cidade de Lisboa que preferiu não ser identificado, descreveu ao SOL o caos que tem vivido: «Todos os dias são dadas ordens e contraordens pelos responsáveis das chefias, levando a que em muitas situações haja mudança de regras durante procedimentos. Não existe um plano bem definido, não são hierarquizadas as necessidades dos serviços e não são dadas condições de proteção aos profissionais de saúde, faltando frequentemente parte dos equipamentos e, por vezes, faltando todo o equipamento».

Refere ainda que nos hospitais periféricos, todas estas dificuldades são muito agravadas. «A falta de equipamento, segurança, liderança e planeamento vão levar à deserção dos profissionais de saúde por medo, doença e exaustão, sendo o resultado a falta de assistência aos doentes, levando a consequência inimagináveis», conclui, afirmando que, tal como acontece com os médicos, as condições de trabalho dos enfermeiros é má: «Passam horas nas enfermarias sem as condições necessárias para cumprir as suas funções em segurança».

 

Costa cruza-se com material no aeroporto do Porto

O tão aguardado material de proteção encomendado por Portugal começou a chegar esta sexta-feira, como anunciou António Costa através das redes sociais. «Há coincidências felizes. Ao aterrar hoje no Porto, deu-se a coincidência de ter apanhado o momento exato da descarga de milhares de equipamentos de proteção individual, fatos de proteção e máscaras, que chegaram hoje a Portugal, num avião da Ethiopian Airlines», escreveu o primeiro-ministro, acrescentando que o material vai ser distribuído onde faz mais falta e que o Governo está a reforçar as encomendas e também a receber mais donativos.