esde sempre, a doença, a saúde e os temas relacionados com o corpo e a mente inspiraram a palavra escrita em obras incontornáveis do nosso património universal. Bastaria trazer à memória algumas páginas da Bíblia, da Odisseia, da Divina Comédia, ou dos Lusíadas … Numa apropriação mais alegórica, a pandemia serviu a autores tão diferentes quanto Shakespeare, para exprimir o ódio e a violência entre as famílias – pensemos na fala de Mercutio em Romeo e Julieta (1595): “I am hurt; / A plague o’ both your houses!” –, ou Camus que faz da peste a metáfora ostensiva da invasão, do contágio, e, por extensão, da guerra e da resistência no romance homónimo de 1947, escrito durante a ocupação nazi. Mais próximo de nós, o final do século XX viu multiplicarem-se, pelo mundo fora, romances retratando epidemias : The Wall of the Plague (1983) do escritor sul-africano André Brink ; El Amor en los tiempos del cólera (1985) do colombiano Gabriel García Márquez, sem esquecer o Ensaio sobre a cegueira (1995) do nosso José Saramago ou A Prayer for the dying (1999) do romancista americano Stewart O’Nan.
A lista não precisa ser exaustiva para, à imagem do médico e escritor Fernando Namora, podermos “equiparar a fisiologia da sociedade à fisiologia humana” (1) . Nem para, no nosso planeta actualmente confinado por um vírus que avança, sem tréguas, qual “febre desconhecida” (retomando a Peste de Camus), estabelecermos todo o tipo de analogias…
É costume considerar-se a literatura como um espelho da vida, uma forma de âncora com a realidade, a sociedade, a cultura e a história. Mas uma vez que as obras ficcionais em geral não se contentam em descrever a realidade, nem precisam de ver a realidade para a reinventar (veja-se como Jules Verne, por exemplo, antecipou, no século XIX, realizações científicas dos séculos seguintes), elas permitem, numa certa medida compreender (no sentido de abranger, em todo o seu possível alcance) melhor. Este modo singular de proceder que é próprio da arte e da literatura tem justificado a sua utilização por outras áreas do saber, designadamente a medicina, pois contradiz a ideia que para compreender – leia-se, diagnosticar, tratar, curar – é preciso abstrair, e de alguma forma desubjectivar o conhecimento.
Como o reflectiu, João Lobo Antunes, este modo de deportar o sensível é muito comum na era da “nova medicina”, hoje prevalecente e patente em aspectos como: a fragmentação especializada dos saberes, a objetivação da pessoa doente, a mercantilização dos cuidados de saúde, a hegemonia das técnicas de imagem em detrimento da escuta e do toque. (2) Por essa razão, o célebre escritor e neurocirurgião, defendeu o valor inexcedível das “humanidades” em geral e da literatura em particular para o exercício da alteridade, enquanto princípio de compreensão do outro, ou, por outras palavras: pensar com flexibilidade, integrando e fazendo interagir o outro no meu pensamento e no meu agir. E preconiza o treino desse exercício, que chamaremos inter-relacional precisamente no contacto com a literatura. Através de uma metáfora poderosa – Ouvir com outros olhos, convida-nos a ler muito para, com as obras de ficção, apurar o sentido “captar outras vozes, compreender o significado oculto das palavras, e ter a competência para falar com qualquer pessoa” (3) . O estado de emergência sanitária, que nos confronta hoje com o incognoscível mostra-nos que a doença é mais que nunca um conceito de extraordinária complexidade, que não se pode normalizar em estatísticas nem em linguagem coerciva. Ao utilizarmos, por exemplo, expressões como hospitais sujos versus hospitais limpos estamos a fazer cair sobre os doentes, e os próprios profissionais de saúde, aquela cidadania bem pesada de que fala Susan Sontag (4), atirando-os para fora do mundo das pessoas saudáveis. As doenças têm história que a memória não esquece.
O que nos conduz a uma aproximação ou espécie de afinidade entre as obras pandémicas com que iniciámos: a presença de homens e mulheres comuns, acções individuais e colectivas, face aos maiores dramas da vida: a doença, a morte, a tragédia do isolamento. Sem preocupação descritiva ou factual, mas pela força das palavras, desvelando aspectos do mundo habitável que são como que imperceptíveis ao nosso olhar quotidiano.
A saída, em José Saramago, é sobretudo entre olhar e reparar; e como o olhar é o lugar do encontro com o mundo, e da inteligibilidade, reparar, no duplo alcance da palavra, aparece como a escolha, ou a passagem entre simples espectador desinteressado (o que também é, tem direito de ser, inadiavelmente, qualquer leitor) e pessoa que descobre lendo, e lê descobrindo um conjunto de questões primaciais relativas ao ser(se) humano e ao seu papel no mundo. A lucidez do olhar não dispensa o desejo – ou o gesto – de reparar: despertar a consciência, mobilizar.
E, assim, desenvolver duas atitudes do senso comum: pensar por si próprio e posicionar-se com inteligência, tolerância e serenidade, perante a irredutível pluralidade da Natureza das coisas, para lembrar Lucrécio. Nenhum caminho se impõe como uma evidência absoluta, « como é razoável para quem tem de atravessar na vida tantos males. » (5)
1 Fernando Namora, A Nave de Pedra, Amadora, Bertrand, 1981 [1975].
2 António Lobo Antunes, A Nova Medicina, Lisboa, Relógio D’Água Editores / Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012, 29 ss
3 João Lobo Antunes, Ouvir com Outros Olhos, Lisboa, Gradiva, 2015, p. 44.
4 Susan Sontag, A doença como metáfora e a Sida e as suas metáforas, trad. José Lima, Lisboa, Quetzal Editores, 1998, p. 11.
5 Lucrécio, Da Natureza das Coisas, (trad. Luís Miguel Gaspar Cerqueira), 2015, Lisboa, Relógio de Água, V: 226.
Maria de Jesus Cabral, professora FLUL e coordenadora do Grupo de Investigação LEA! Lire en Europe aujourd’hui