A César o que é de César

O papel e a responsabilidade da capitalização do tecido empresarial não é de César. Para que não se cometam erros do passado que custaram bem caro a todos.

São inúmeros os desafios criados pela atual crise sanitária, e muitas linhas se escrevem sobre o tema. A discussão vem-se densificando em torno do retomar da atividade económica num pós-confinamento gradual, para que conflui uma quase dramática vontade de as pessoas voltarem aos seus ritmos de trabalho, e as empresas voltarem às relações de troca que lhes permita gerar valor. De preferência, que a retoma seja rápida e que os sacrifícios de todos os portugueses nas últimas semanas não tenham sido em vão.

É neste contexto que se tem discutido o papel do sistema financeiro. A forma como as instituições poderão contribuir descreve-se, sucintamente, em duas etapas. Na primeira, garantir a capacidade de liquidez das empresas que permita honrar com os seus compromissos de curto prazo, mantendo o emprego e mantendo-as em sobrevivência na esperança da continuidade do negócio no pós-crise. Na segunda, garantir que a atividade económica possa ser relançada aproveitando a capacidade instalada que se manteve, de modo a que possa gerar valor. A pergunta que se impõe é: qual a parte que cabe ao sistema financeiro na ajuda à atividade económica? Nesta reflexão, é primordial revisitarmos o propósito da atividade de intermediação financeira. As instituições compram dinheiro para emprestar dinheiro. E compram dinheiro a um determinado preço (mesmo que negativo). Para simplificar, vamos considerar que esse é o custo da matéria prima. A que acrescem outros custos, como toda a sua estrutura, os salários, e… o risco de crédito. Esse ‘custo’ é prospetivo, e está dependente da capacidade de as empresas honrarem com os seus compromissos no decurso do período dos contratos de financiamento que estabelecem com as instituições financeiras. 

Agora, façamos uma breve análise do lado das empresas, nomeadamente à estrutura de financiamento. Como se financiam? Para simplificar, financiam-se com capitais próprios (dos seus sócios, das suas reservas e resultados transitados passados), e com capitais alheios (dos empréstimos que contraíram). Isto, partindo do princípio da existência de um salutar equilíbrio de tesouraria entre o que se paga a fornecedores e o que se recebe de clientes. 

Mas, em todas as empresas, há compromissos imediatos: com os salários dos trabalhadores (pagos a pronto), com a autoridade tributária (também, a pronto), com serviços de alugueres, rendas e outros cuja exigência de pagamento é de curtíssimo prazo. A isto chama-se, de forma muito simplificada, necessidades de tesouraria.

E, como posso financiar as necessidades imediatas de tesouraria? As empresas que detêm uma estrutura de financiamento alicerçada por capitais próprios numa proporção privilegiada face a capitais alheios, e tendo uma estrutura de ativos que lhes permita liquefazer uma parte no curto prazo terão os seus problemas minimizados, garantindo a sua sobrevivência, em atividade reduzida, durante algum tempo. Mas, dirão alguns dos leitores que isso sucede no “país das maravilhas”. Que não é o caso. Por isso, as empresas precisam de recorrer a capitais alheios, como são os empréstimos bancários. Que, como em qualquer atividade, têm um custo e são compromissos para honrar. Como? Na expectativa de uma atividade futura que permita acomodar esses encargos, de forma continuada.

Esta é a centralidade da reflexão: o trabalho da instituição financeira não é só o de emprestar dinheiro. É, antes o de analisar o risco inerente à atividade da empresa. Não é saber quanto dinheiro a empresa precisa. É antes saber se é economicamente viável uma vez estabilizada a sua tesouraria. Se sim, então a resposta a um pedido de concessão de crédito tenderá a ser positivo. Se não, então a resposta só poderá ser positiva com garantias adicionais, pois a contragosto, arriscará uma resposta negativa. 

Porque a atividade da intermediação financeira é bem diferente da atividade do mercado de capitais, do capital de risco, dos investidores que esperam retorno dos investimentos, estando esse retorno diretamente relacionado com a capacidade de as empresas em que investem gerarem resultados futuros e os respetivos dividendos.

Bem sei que não é hora de falarmos na necessidade de capitalização do tecido empresarial português para que seja possível crescer em tempo de prosperidade. A hora é de navegação de terra à vista. Tendo a consciência da enorme tormenta em alto mar, sabemos que não é na costa que se pesca sardinha sendo, porém na costa que mais combustível se consome para manobrar a embarcação. Navegar em alto mar exige uma estratégia para a qual não há momento, mas cuja preocupação não sairá do nosso trajeto. Porque a ausência de estratégia implicará que façamos parte da estratégia de outros. E isso, compete-nos rejeitar, uma vez que deveremos ambicionar ser os donos do nosso destino.
Agora, é a hora de acudir às necessidades. Mas, como em tudo, a afetação de recursos implica escolhas. E essas recairão sempre sobre os agentes economicamente viáveis. Os que já apresentavam saúde e que agora precisam de ajuda. Os que estruturalmente se apresentavam débeis não terão as mesmas oportunidades. Os que se iniciavam ou que estariam a experimentar um ciclo de prosperidade, talvez precisassem, não de financiamento bancário, mas sim de capital.

Por isso, ‘a César o que é de César’, quando falamos no papel do sistema financeiro na gestão da crise. O papel e a responsabilidade da capitalização do tecido empresarial não é de César. Para que não se cometam erros do passado que custaram bem caro a todos.

*Pedro Gouveia Alves, Economista, presidente do Montepio Crédito