Maria Velho da Costa. “Que grande pata foi meter, Maria, na poça da medíocre criação”

Desapareceu, aos 81 anos, a autora de Maina Mendes e Casas Pardas, que, com uma obra romanesca breve, mas de enorme fulgor e com um forte apelo de desordem, produziu um abalo decisivo na narrativa portuguesa. 

Morreu na noite de sábado, dia 23, Maria Velho da Costa. Tinha 81 anos, estava lúcida, aflita com a sua condição, com o aperto a que se pode chegar enquanto a morte se faz rogada. Já há uns anos que lhe enviava missivas a pedir que se despachasse, e as últimas semanas terão sido insuportáveis. Mas há coisas que não se imaginam, aspectos do sofrimento que, mesmo com atilhos literários, são demasiado indigestos para que alguém fale.

A escritora despedira-se ao seu jeito, publicando um último romance, "Myra", em 2008, e, quatro anos depois, um livro de histórias curtas, "O Amante do Crato", com ilustrações de Ilda David. Desinteressada de galas, das cerimónias em que os pavões de loiça se exibem, disfarçando como racham por todos os lados, quis que o seu último ponto final fosse inteiramente dominado, não ficando à mão desses acessos de senilidade de quem às vezes muito cedo perde as rédeas ao impulso e ao tumulto necessários à criação.

Nascida em 1938, no seio de uma família burguesa lisboeta, Maria de Fátima Bivar Velho da Costa fez mais por menos, mais por uma página ou até por um parágrafo do que tantos fizeram em volumes, e a sua obra literária, que não é vasta, desfechou dos mais clamorosos golpes na narrativa portuguesa, com a sua prosa a organizar-se como uma enleante matéria, uma armadilha encantatória em que tudo ressoa estendendo um território de sobressalto, de ansiedades, numa narração que come à mesa do quotidiano mas que, se participa na conversa, escarnece dele, parodia-o, imita e exagera os seus modos, através de uma linguagem que, se vai gerando o efeito de verosimilhança, como nota Eduardo Lourenço, ao mesmo tempo não se deixa petrificar.

No seu diálogo com a tradição, Maria Velho da Costa soube nutrir um ciúme da poesia e dos poetas que lhe foi imensamente útil ao servir-se dos poderes encantatórios próprios do exercício poético para que a sua obra romanesca funcionasse como uma ampla câmara em que cada frase se recusa a cicatrizar, e entretece ecos, citações, motivos que se perpetuam muito para lá dos elementos da ficção. Assim, soube fazer da sua escrita um ser capaz de “recolher docemente o espírito gentil dos mortos para depois falar com mais doçura às coisas” (Céline). A referência não vem ao calhas, pois também a autora de “Casas Pardas” insistiu muito que não fazia o seu domínio por meio das ideias ou das mensagens. Interessava-lhe sim o estilo, essa sagração impura, esse subir pelas fendas de uma vida que profana tudo, essa trabalheira muito dura, um ouvir a invasão chegar pelos fundos, arruinar essas cabeças que vivem de uma linha limpa, de uma melodia só, quebrar-lhe em cima gerações em loiça e vidro. E voltando a Céline, à sua explicação de como é feito esse estilo que Maria Velho da Costa comungava, ele é ganho a muito custo “com uma certa forma de forçar as frases a saírem ligeiramente do seu significado habitual, de fazê-las sair dos gonzos por assim dizer, de deslocá-las e forçar portanto o próprio leitor a deslocar-lhes o sentido”. Mas depois não basta vir com uns abusos no trato, mexer à bruta com uma longa colher de pau, tem de ser feito “com muita muita finura, muita delicadeza”, e é isso o que, por fim, distingue o escritor, o modo como passa derreado, com a língua a estalar, assobios, cacarejos, a língua numa imensa fauna. E as personagens andam pelo mesmo, tortas, apertadas pelos nós da língua, é uma “gente truncada”, como bem apontou António Cabrita, e a autora, que não as inventa propriamente, tanto como acolhe, reconhece, numa heroicização dos danados, dessas vidas que se escrevem sobre as linhas do sufoco, sabe que ser covarde pode ser muito mais duro do que resolver tudo na base da coragem, muitas vezes tão estúpida, tão cega. Isso sim, ter as condições e, em consequência, as qualidades verdadeiramente humanas, essa vileza tantas vezes necessária, a consciência do mal, o pacto com ele, para poder ir adiante, desde o saber o quanto a vida custa até aos sacríficios para se chegar ao dia seguinte. Há, portanto, nesta obra, uma boa dose de suspeita depois quanto a esse baile democrático, aos regimes que despontam facilitando, desde logo na escrita, nesse sentido que segue, ao mesmo tempo, na frente, como canário na mina, e na retaguarda, estudando os compassos na forma como a moral afrouxa, e as pulhices se organizam. Mas veja-se como, no seu “Da Rosa Fixa”, essa espécie de dicionário de ideias por fazer, como nos traz uma definição crucial do amor de contorno tão mais largo do que estamos habituados: “Um amor é como um povo exaurido da distracção dos tiranos. Ao Sul uma enxada decepa-me das lágrimas, dessa surpresa sobre o teu peito, a guarda amena. Contrária a glória nos afasta, pequena boca ignota. Mas a siderurgia, amor, urbana, a letra em aço, haverá de impor aos teus dias um fulgor impassível.”

Nesta escrita, que se está consciente dos embalos mais ferinos, da floração mais intensa da língua, daí o apreço desde logo pela lírica camoniana, há depois também essa aproximação ao registo satírico das cantigas de escárnio e maldizer medievais, e não se pode também descontar o estudo das línguas mais maldosas, essa espécie de júbilo vivificante que se aprende com “o velho Villon das baladas”, que, de acordo com Mário de Carvalho, a amiga Fátima trazia “tão conhecido de cor”. Ora, lembre-se uns versos de uma das mais célebres baladas, uma que tão bem exprime esse gosto pelos recessos da língua, “Em rosalgar, em pedra arsenical/ em enxofre, em salitre e em cal viva,/ em chumbo que a ferver rói mais brutal,/ em sebo e pez junto a lixívia activa/ de mijo de judia cagativa (…) sangue de cobra e drogas venenosas,/ fel de texugo, lobo e zorra dado” (na tradução de Vasco Graça Moura). Porque o “crioulo galáctico” que Velho da Costa vai urdindo está para além de um vigor ruaceiro, é um ouvido que capta as músicas pobres, essas sombras de ser que passam rasando o mutismo, e daí que a sua literatura seja um dar o troco, um “reapalavrar”, para que esses desgraçados relatos adquiram o seu contorno prenhe e escandaloso.

Maria Velho da Costa, que foi funcionária pública toda a vida, como alguém já sublinhou, primeiro pelo Instituto Nacional de Investigação Industrial, por último no Instituto Camões, vivendo quase uma década em Londres, onde foi leitora de português no King’s College, na década de 80, e passando depois uns anos na embaixada de Portugal na Cidade da Praia (1988-91), não foi uma mulher que tenha vivido à margem do fôlego transgressivo que foi agrafando com a sua escrita. Ela mesma, por onde passou, causava perturbação, teve casos, não ficou de musa mas extraiu muitas das provas do que tem de ser arrancado à força, e mais do que os atrevimentos com que o espírito fere um texto, causou transtorno por onde passou. Assim, o episódio da acusação de que foi alvo, em 1973, por causa das "Novas Cartas Portuguesas", o livro que escreveu com outras duas Marias e que a polícia de costumes do Estado Novo considerou “pornográfico e atentatório da moral pública”, não foi, na sua vida, um momento incaracterístico, e, já em democracia, foi por várias vezes alvo de outros processos de acusação não menos insidiosos, mas mais discretos. O seu feminismo era um cuspir em cima não apenas da moral ou das convenções, mas, sobretudo, de uma expectativa de que a mulher deve poder subir tão alto como qualquer homem. A ela talvez lhe interessasse mais a possibilidade de descer tão baixo como qualquer homem. E poderiam ser dela os versos de Heiner Muller, “Alguma coisa me consome// Fumo de mais/ Bebo de mais// Morro de menos”. Na obra que agora irá espantar-nos com a sua capacidade de se renovar, pela palavra que permanece em desafio, “como quem se alimenta do que derrama”, como um corpo que, ao invés de condenado à mera decomposição, se recompõe por meio dos seus fluidos, “da hemorragia à urina para fazer leites”, para que a metáfora, seja por que meios for, persista, escorra, viva. E é aí que vamos encontrá-la, “estrangeira na carne solitária”, como qualquer rosa, indevassável, recolhendo sempre à imagem para levantar a graça “sobre a circunstâncias lerdas da vida e suas rotinas”.

Um retrato será sempre difícil, mas Margarida Vale de Gato, reclamando os mesmos artifícios inquietos, a mesma graça densa, falou em versos da “loira moura”, “perclara escritora”, que causa uma admiração que não se fica, mas se assanha, se sente puxada, arrastada, numa de erguer tempestades ainda que forçada a virar “ao lado inexistente do vento”. Reconhece-lhe o pântano infernal de que retira as suas personagens, e fala-nos dessa “imemorial matéria/ de duro caroço de fogo e que queima/ quando menos cuidamos”. E a surpresa entre tanto foi a mesma, “o muito requinte da sua lábia que chega a meter raiva”, ou como Mário de Carvalho notou o talento para enredar essas “sonoridades fortes que sobressaltavam e desacatavam o que havia de mais íntimo e recolhido em nós”. De resto, também Maria Velho da Costa, no exercício tudo menos avaro da sua admiração pelos outros, pelos seus contemporâneos, exaltava também em Maria Gabriela Llansol o seu “extraordinário ouvido linguístico e um comando da língua portuguesa absolutamente excepcional, ao nível da Agustina”. E acrescentava, em tom de impertinência: “Ela não gostaria de ouvir isto, mas suspeito que é capaz de sacrificar o sentido ao bom gosto da eufonia da palavra.”

Qualquer caminho que tenha de se fazer na literatura, terá de provocar um desgosto tremendo, desde logo sendo feito às margens da “pilhéria intelectual” (Vale de Gato), e a menina de boas famílias, que nos tempos do colégio de freiras, na Lapa, começou por receber elogios pelas suas redacções, não demoraria a perceber que a mesma estrutura de reprimendas que mantêm no seu lugar os humilhados, que organizam as classes, que deixam lá ao longe, a salvo, o sagrado mistério, tecendo essa rede de valores intocáveis, incontestáveis, uma imbricação que ilude a fraude por meio do sublime, todas essas mistificações com as quais a escrita literária acaba por se confrontar, por meio de investigações, da sua persistente interrogação. “E se, estando nisto, alguém quiser deixar brotar na escrita um fluxo que lhe escorra do sentir-se apunhalado nas costas por uma faquinha de cozinha, canhestra mas mortal, se alguém quer deveras fazer isso, escrevendo e escrevendo sem ver a quem mas vendo tudo, sabendo que as editoras ricas vão pensar e truncar e as pobres vão dizer que não na agonia, eu a esse chamo escritor do meu país. Do que ainda existe”, escrevia Velho da Costa em outubro de 1973.

Depois da estreia, com o livro de contos “O Lugar Comum”, em 1963, a cada passo iam desmultiplicando-se os aspectos dessa afronta, das personagens femininas que, por mais desamparadas, se viam, por fim, situadas, mesmo que incomodamente face ao cânone ocidental, e foi assim que esta “mulher entre todas”, como Vale de Gato vinca, “entre grinaldas de rosários, galdérias com o almíscar e o coração na boca, robustas ditosas dissimuladas mariquinhas”, chamou para o seu primeiro abalo decisivo na narrativa portuguesa, com “Maina Mendes” (1969), a mulher que perdeu a fala e que, vai reconstruir-se a partir dessa mudez, num crescendo de consciência em que vão caindo pelo caminho todas as leis, todos os constrangimentos, em direcção à desavergonhada plenitude, desdobrando-se interiormente, nesse sentido congénito da revolução, aquela que, de acordo com o seu dicionário, passa pelo “permanente retrocesso do sim ao seu princípio, deslumbrado”. E se, como nos diz Mário de Carvalho, o seu génio nasce de um “rodopio do pêndulo entre o pormenor e o absoluto”, se nos fala ao mesmo tempo dessa reserva de verdade, dos assaltos de tristeza que nesta obra descem sobre o leitor, de forma inelutável, “como uma neblina que teima”, traça essa diferença face aos outros escritores, aqueles entre os quais o seu espírito há-de acotovelar-se, nessa eterna bulha da posteridade, tendo a seu favor a capacidade de renovar o espanto, tendo caçado tanto vendavais como “o apontamento mais singelo e a expressão breve, captada em qualquer esquina de Lisboa ou num carreiro remoto do campo”. Assim, o amigo insiste na polifonia de “falas genialmente captadas”, na multiplicidade de recursos que é “vertiginosamente usada em cada parágrafo, num remoinho que nos sufoca e levanta nos ares”, mas fala-nos também numa “subversão endiabrada dos processos narrativos e numa prática de jogos de linguagem que lembram o barroco, mas também os grandes efabuladores do século XVIII, como Fielding ou Sterne”. E isto, que tanto exige do autor, exige também algo que o leitor habituado a ser seduzido e gratificado com banais regimes de auto-identificação pode já não atingir. Pode sentir-se excluído, e ressentir-se com cada ousadia desta forma de volúpia, porque, afinal, como Margarida Vale de Gato resumiu: “que grande pata foi meter, Maria, na poça da medíocre criação”. Assim se despede, ainda sem facilidades, continuando a dizer-nos que não, que “a bestialidade do sofrimento não é da ordem da palavra que revela bons sentimentos”, e que “só monstros a contemplam como mistério da criação”. E porque toda a grandeza interior desponta no mundo como uma monstruosidade, antes de tantos nela se acolherem, a um grande escritor resta a confiança de saber que “Deus escolhe a dedo os seus”, por mais medonhos e temíveis que sejam para quem assiste, por mais que lhes custe a engolir.