Lisboa com sinal vermelho

Semana de feriados pode levar a atrasos nas notificações de novos casos. Governo criou gabinete de supressão da epidemia na região, que coloca Portugal entre os países europeus onde a covid-19 parece menos controlada.

A semana foi atípica, com dois feriados pelo meio que podem levar a atrasos na notificação de novos casos, mas os novos diagnósticos em Lisboa e Vale do Tejo não mostram ainda sinais de abrandamento. De segunda-feira até ontem, foram diagnosticados 1295 novos casos de covid-19 no país, 1185 na região de Lisboa, o que compara com 1269 e 1138 nos mesmos dias da semana passada. Nos hospitais da Grande Lisboa, a situação mantém-se estável, com um ligeiro aumento de doentes internados e em cuidados intensivos no Amadora-Sintra e em Santa Maria, mas dentro da capacidade de resposta regional.

Depois de uma estratégia inicial de rastreios nos setores onde foram detetados mais casos nas últimas semanas, o Governo anunciou a criação de um gabinete regional para a supressão da covid-19 em Lisboa e Vale do Tejo, que ontem reuniu pela primeira vez. Há, no entanto, críticas ao tardar de medidas específicas na região de Lisboa e à falta de recursos na área de saúde pública. Se a criação do gabinete foi vista como um primeiro sinal de reforço, é ainda considerado insuficiente. Lá fora, a situação nacional destacou-se pela negativa de outros países europeus, embora também Espanha, França, Itália e Alemanha tenham registado nos últimos dias um aumento de novos casos. Numa avaliação publicada pelo Centro Europeu de Controlo  de Doenças, Portugal surge como um de três países europeus onde a epidemia parece menos controlada. Segundo a análise do ECDC, nos últimos 14 dias 28 países europeus tiveram uma incidência de novos casos abaixo dos 20 por 100 mil habitantes. Portugal e Reino Unido situaram-se entre os 20 e os 100 casos. Acima deste patamar só a Suécia.

A ponta do icebergue?

Num ofício dirigido à ministra da Saúde, o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) saudou a criação do novo gabinete, liderado pelo médico Rui Portugal, considerando-a no entanto tardia.  «A epidemia de COVID-19 continua descontrolada na região de Lisboa e Vale do Tejo. Desde o início desta epidemia que não houve por parte da Autoridade de Saúde Regional uma estratégia com vista ao controlo da mesma. Estão por contactar centenas de doentes positivos para covid-19, ainda com inquérito epidemiológico por realizar e, portanto, desconhecendo-se os respetivos contactos. Daí que estes números poderão ser a ponta do iceberg de um gravíssimo problema de saúde pública», denuncia o SIM, defendendo orientações claras para a região, disponibilização de meios, estratégias para a vigilância de doentes infetados sem médico de família atribuído e o reforço dos médicos de saúde pública, a quem não estão a ser pagas horas extraordinárias. 

Ontem, no briefing diário, a secretária de Estado Adjunta da Saúde e a diretora-geral da Saúde asseguraram que da primeira reunião resultou a necessidade de reforço de intervenção, para a tornar mais eficiente, mas não foram discriminadas ações concretas.

Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, diz que a situação em Lisboa e Vale do Tejo continua a suscitar apreensão, admitindo que a maior circulação de pessoas nos últimos dias no país deverá ser seguida de maior monitorização nos próximos dias, de forma a perceber se não existem novos focos noutras regiões. 

Para o médico, a criação do novo gabinete veio mostrar que existe preocupação com a situação na área metropolitana de Lisboa,  defendendo mais recursos na região e reconhecendo também que há inquéritos epidemiológicos que não têm sido feitos com a devida celeridade, também por não estar a ser pago trabalho extraordinário às equipas de saúde pública. Ao fim de três meses de trabalho no terreno, admite que existe algum cansaço. «Se as coisas não estavam correr bem, era preciso perceber por que não estavam. É uma questão de recursos disponíveis? De liderança? Tudo isso se resolveria sem ser preciso criar uma nova estrutura, ou se aumentam os recursos ou se mudam as lideranças. Se isto é um sinal de que vai haver mais recursos e intervenção, temos de o encarar como positivo, mas objetivamente foi o reconhecimento de que as coisas não estavam bem».
 
‘As pessoas jovens não vivem sozinhas’

Os dados das últimas semanas mostram que a maioria dos novos casos na região de Lisboa e Vale do Tejo têm sido em pessoas mais jovens, em particular nas faixas etárias dos 20 e dos 30 anos, ao contrário do que aconteceu na epidemia na região Norte e Centro, onde houve um peso maior de idosos entre os infetados. 

A maior concentração de casos em cinco concelhos – Loures, Sintra, Amadora, Odivelas e Lisboa – tem sido outros dos focos de ação, com as autarquias envolvidas na nova estrutura de missão. Em Lisboa, os habituais festejos do Santo António levaram a um despacho com regras e a fiscalização vai ser intensificada para dissuadir concentrações. Em Sintra, o concelho onde têm vindo a ser detetados mais novos casos, não foram anunciadas novas medidas. Já o presidente da Câmara de Loures, Bernardino Soares, fez um ponto de situação,  adiantando que apenas um terço dos casos de covid-19 detetados no concelho desde o início da epidemia estão ativos, mas que dificilmente será possível manter em casa trabalhadores. «A nossa perceção, confirmada no terreno, é que se se uma pessoa tem de ir trabalhar para não perder o emprego, porque está precário ou porque é a forma de subsistir e ter alimentação em casa para a sua família e para os seus filhos, não há confinamento que o segure em casa», alertou.

A DGS e o Ministério da Saúde têm apelado para que todas as pessoas diagnosticadas ou com sintomas se mantenham em casa, mas não foram anunciadas novas medidas nesta área. Ontem foi publicada a resolução do Conselho de Ministros que na  terça-feira prolongou o estado de calamidade até ao final do mês, garantindo para já a abertura dos centros comerciais nos distritos de Setúbal e Lisboa na próxima segunda-feira. Uma decisão que, no terreno, se soma à apreensão que já existe na região. «Esperamos que a situação evolua positivamente, mas temos de fazer por isso. Nos outros países vemos que estão a contratar pessoas para fazer contact tracing, o SNS24 poderia ser reforçado nesse sentido por exemplo», diz Ricardo Mexia, admitindo preocupação com o passo dado em frente em Lisboa quando ainda não há sinais de melhoria: «Quando o primeiro-ministro disse que, se tivesse travar, não hesitaria, a evidência não tem sido essa. Se a situação em Lisboa pode não implicar reverter medidas, pelo menos levaria a abrandar. Com menos casos, entendeu-se adiar a abertura dos centros comerciais, com mais casos vão reabrir. Há dados que não temos, mas face aos números é difícil que não continuemos a ter transmissão comunitária».  Ricardo Mexia sublinha ainda que, apesar dos últimos casos serem maioritariamente em jovens, mais saudáveis, não estão isolados: «As pessoas jovens não vivem sozinhas».