O início do fim de Hong Kong?

Os manifestantes prometem lutar até ao fim. Outros poderão optar por pedir cidadania britânica, um processo que será facilitado por Boris Johnson.

Quem temia que a nova lei de segurança nacional de Hong Kong fosse utilizada para visar manifestantes, e não o “terrorismo”, como garantiam as autoridades chinesas, viu as suas suspeitas confirmadas em menos de 24 horas após a aprovação da lei, que criminaliza os apelos à secessão, a subversão e a conspiração com forças estrangeiras. Já foram feitas as primeiras detenções ao abrigo desta lei, incluindo um manifestante que levava um cartaz onde se lia “Independência de Hong Kong”. A pena pode ser prisão perpétua, tweetou Hu Xijin, diretor do Global Times, o jornal oficial do Partido Comunista Chinês.

“Isto marca o fim de Hong Kong como o mundo conhecia antes”, assegurou no Twitter o ativista Joshua Wong, do Demosisto, um partido pró-democracia em Hong Kong, herdeiro dos chamados protestos do guarda-chuva, de 2014, muito semelhantes aos protestos massivos que abalaram a cidade o ano passado. Desde a passagem da nova lei de segurança nacional, o Demosisto já decidiu debandar, temendo que os seus membros sejam perseguidos.

Entretanto, apesar da condenação internacional, a nova lei foi bem recebida pela líder do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, há muito acusada de ser um fantoche de Pequim – a sua reação à nova lei deverá aprofundar ainda mais essa perceção. “Respeitem o direito do nosso país a salvaguardar a segurança nacional”, apelou Lam, num vídeo dirigido ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra.

Em protesto contra a aprovação da nova lei, os Estados Unidos preparam-se para acabar com o estatuto especial de que desfruta Hong Kong, um dos principais centros financeiros chineses, até agora isento de muitas das tarifas e restrições impostas por Washington ao longo da sua guerra comercial com Pequim. As consequências para os mercados financeiros são imprevisíveis, ainda para mais em tempos de pandemia. E arriscam piorar as relações entre os dois gigantes.

 

Raiva e detenções Como seria de esperar, as ruas de Hong Kong encheram-se de gente em fúria, protestando contra a nova lei. Mais de 300 pessoas foram detidas, segundo a Associated Press, algumas por alegada posse de arma – um vídeo mostra um manifestante a esfaquear um polícia no braço. Além disso, foram ateados fogos em Causeway Bay, um dos principais bairros comerciais de Hong Kong, enquanto manifestantes tentavam impedir o tráfego com montes de tijolos. Já as autoridades dispararam gás lacrimogéneo e gás-pimenta, recorrendo também a canhões de água.

“Resistir até ao fim”, lia-se em cartazes de manifestantes, segundo a Reuters. É muito possível que seja esse o caso: os termos vagos da nova lei de segurança podem permitir que sejam detidos manifestantes em massa por coisas tão simples como formar correntes humanas à frente de edifícios públicos, “seja através da força ou não”, avisou a vice-presidente da Ordem dos Advogados de Hong Kong, Anita Yip Hau-ki, ao South China Morning Post, sugerindo que até a imprensa pode ser visada por críticas ao Governo.

Para os que não se sentem capazes de lutar até ao fim, já há uma saída: o Governo do Reino Unido anunciou que vai facilitar o acesso de pessoas de Hong Kong à cidadania britânica em resposta à nova lei de segurança nacional. Os cerca de três milhões de hong-kongueses elegíveis para este estatuto poderão viver no Reino Unido durante cinco anos e depois pedir a cidadania, sem limitações.

 

Raízes históricas Importa lembrar que a data da aprovação da lei pode ter sido escolhida por motivos simbólicos: ocorreu na véspera do 23.o aniversário da entrega de Hong Kong à China pelos britânicos, esta quarta-feira. Dado que uma parte da lei de segurança nacional criminaliza a conspiração com poderes estrangeiros, a data vai ao encontro das acusações de Pequim de que os manifestantes são agitadores às ordens das potências ocidentais ou saudosistas do Império Britânico. Não ajuda que, por vezes, sejam avistadas bandeiras do Reino Unido e dos EUA em protestos.

No fundo, a raiz do descontentamento em Hong Kong é mesmo essa: o acordo de concessão assinado com os britânicos – e com os portugueses, em Macau. Os dois territórios administrativos especiais ficaram com regras próprias, a doutrina “um país, dois sistemas”, com modelos administrativos, legais e económicos diferentes do resto do país.

Por um lado, estas regras próprias permitiram que Hong Kong se tornasse um centro financeiro, enquanto Macau se construía como uma meca do jogo na Ásia. Por outro, tudo isto tinha um prazo de validade, até 2047