Reflexões de Verão

Acabei de ler um livro muito interessante de Francisco Neto Carvalho (Do Estado Novo à Democracia – Memórias e Reflexões, Gradiva), pessoa que percorreu todo o caminho desde ministro da Saúde e Assistência de Salazar a apoiante das intenções reformistas de Marcelo Caetano (MC) até às ‘angústias’ de 1974-75 e ao desempenho de vários cargos…

Acabei de ler um livro muito interessante de Francisco Neto Carvalho (Do Estado Novo à Democracia – Memórias e Reflexões, Gradiva), pessoa que percorreu todo o caminho desde ministro da Saúde e Assistência de Salazar a apoiante das intenções reformistas de Marcelo Caetano (MC) até às ‘angústias’ de 1974-75 e ao desempenho de vários cargos responsáveis em plena democracia. A sua leitura ajudou-me a perceber mais as diferenças entre os projetos de Salazar e de Caetano e a compreender melhor o posicionamento da nossa atual democracia no percurso histórico português.

Sim, o salazarismo que, já sem Salazar, derrotou MC e o levou à desistência no Quartel do Carmo em 25 de Abril era o mesmo que ele, MC, havia descrito numa carta privada a Salazar em 8 de Abril de 1948:
«O salazarismo, hoje, é um estado de espírito negativo das classes possidentes, encarnando o medo de tudo o que é desagradável – a guerra, a revolução, o comunismo, o desgoverno…«. in Salazar Caetano Cartas Secretas 1932-1968 de J. F. Antunes, Círculo de Leitores.

Foram essas classes possidentes, designadamente os ‘7 grandes grupos económicos’ com fortes interesses nas colónias e os agrários feudalistas do Alentejo e Ribatejo que liquidaram a ‘renovação’ marcelista, deixando como única hipótese de evolução o 25 de Abril. Foram essas mesmas classes possidentes que procuraram, através de Spínola, manter o colonialismo com feições ‘federativas’; foram elas que tentaram levar a efeito a ‘terra queimada’ prometida por Spínola após o 28 de Setembro, através de uma massiva fuga de capitais, a descapitalização e o abandono técnico das empresas e a tentativa de sabotagem das colheitas de verão nos campos alentejanos e ribatejanos; foram elas que, sempre na ofensiva contra a jovem democracia, empurraram a violência militar do 11 de Março e terrorista do ELP-MDLP, até que o tecnocrata-socialista-patriota Silva Lopes propôs ao MFA a nacionalização da banca.

Foram essas mesmas classes possidentes, mesmo que com outras caras, mas sempre ineptas na gestão e sempre rentistas que, através do seu controlo de partidos políticos permeáveis, combinaram a ‘desamortização’ a seu favor das empresas e patrimónios públicos, tal como haviam feito com a ‘desamortização’ dos bens das ordens religiosas nacionalizados em 1834. Sobre isto diz Francisco Neto de Carvalho (FNC):

«Daqui resultou uma entrada importante de fundos para o erário público, bem como uma ampla redistribuição da propriedade, da qual beneficiou em especial a grande burguesia, em larga medida vivendo nas maiores cidades»
Foram essas classes que, através dos mesmos ‘partidos clientes’, que montaram o grande esquema da coleta e distribuição entre si dos Fundos da União Europeia, ao mesmo tempo que desindustrializaram o país, levaram à extrema dependência alimentar e entregaram a soberania nacional a forças estrangeiras.

Afinal, conclui FNC, «a nova República é, antes, a sucessora das transformações liberais do século XIX, fortalecidas pela paciente política financeira e económica levada a cabo pelo Doutor Salazar e renovada, em termos mais modernos, no plano económico e social pelo Doutor Marcelo Caetano».

Sim, afinal, a nova República saída do 25 de Abril mais não foi, pela mão de Mário Soares e outros, do que a concretização do ‘projeto’ que MC não teve a coragem de levar por diante, vencido como foi pelas classes possidentes.

Temos hoje muitas liberdades, muitos direitos, muitos partidos, muita conversa sobre a democracia. No entanto são as mesmas classes possidentes que continuam, ainda hoje, sem colónias mas com UE, a determinar a vida nacional. FNC, na Nota Final do seu livro, caracteriza-as:
«As formas de capitalismo do final do século XX são demasiado agressivas, economicistas e pouco humanizadas para me poderem agradar, projectando para o primeiro plano o homem egoísta, competitivo, autossuficiente e dominador, com o qual nunca serei capaz de me identificar e solidarizar».