Poucos de nós têm o tempo, ou a clareza, de deixar claros os nossos últimos desejos, aqueles que plasmam o ser que fomos em vida.Outros foram bafejados com a sorte e cultivaram o saber de ter criado uma família que os conheça suficientemente bem para, na hora do adeus, escolher uma homenagem que seja, em simultâneo, um espelho dos seus ideais. Foi assim com a família de Fernanda Lapa que, na hora do adeus da atriz, deixou um repto: ao invés de flores, façam-se donativos para ajudar os descendentes de Bruno Candé, o ator assassinado aos 39 anos, em Moscavide. Fernanda Lapa morreu na passada quinta-feira, aos 77 anos, no hospital de Cascais, onde estava internada. Deixa uma vida feita de teatro, passada em cima, à frente e atrás dos palcos. «É com profundo pesar e imensa tristeza que a Escola de Mulheres comunica a morte de Fernanda Lapa, diretora artística desta companhia desde a sua fundação, em 1995», avançou a Escola de Mulheres, companhia que a atriz e encenadora dirigia ainda hoje ao lado de Marta Lapa, uma das suas três filhas. 

Antes de a pandemia parar o mundo, Fernanda Lapa tinha várias encenações agendadas, entre as quais a peça Gertrude Stein e Acompanhante, de Win Wells, texto que tão bem conhecia e que tinha já levado ao palco do São Luiz no ano passado. Preparava-se para o encenar no Centro Cultural da Malaposta, em Olival Basto, a 27 e 28 de março. A propósito dessa sessão dupla o SOL tinha planeada uma entrevista com a atriz, que não chegou a acontecer, tendo surgido a partir daí o convite para Fernanda Lapa escrever, já durante o período de confinamento, uma crónica sobre a idade e a pandemia. Num texto intitulado «Não contem comigo para ficar quietinha e calada», a atriz dizia assim: «Só a minha reconhecida teimosia me faz levantar da cama de manhã com a convicção absoluta que nada, nem ninguém, me conseguirá fazer parar de trabalhar. Claro que estou, como dizia o poeta José Gomes Ferreira, cheia de ‘saudades do futuro’ – o futuro com os meus colegas de Teatro, no nosso espaço de espetáculos, desbravando um texto, que já comecei a desbravar em casa, criando personagens a partir das propostas do autor e dos intérpretes e, já que o Teatro é, nas palavras de Bernardo Santareno, a mais carnal de todas as artes (também a dança, acrescento eu), repensando as relações possíveis entre os atores em palco e entre os atores e o público possível». Mostrando-se muito preocupada com o futuro do teatro em em Portugal, que via como «hipotecado», pedia que fosse criado «urgentemente, um Plano de Desenvolvimento Teatral com Futuro que preserve este património nacional inestimável, eu afirmo que será cometido um crime contra a Cultura». «Pertenço à chamada geração da ‘peste grisalha’ que muitos gostariam que estivesse quietinha e calada, mas não contem comigo para isso!», terminava.
Manteve essa teimosia e nos meses seguintes, foi alertando sem cessar, para a precariedade do setor e juntando-se às manifestações dos artistas que, na rua, apelaram à intervenção célere do Estado.

Nascida a 11 de maio de 1943 na Junqueira, em Lisboa, era a irmã mais velha da também atriz São José Lapa. Depois de ter estudado no Colégio de Santa Maria de Belém, quando frequentava já o curso de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa passou a integrar o Teatro dos Alunos Universitários de Lisboa. Estava-se no ano de 1962. Logo no ano seguinte juntou-se à Casa da Comédia, entre nomes como Maria do Céu Guerra, Manuela de Freitas ou Norberto Barroca.

Foi aí que se estreou profissionalmente, em 1963 ainda, com Deseja-se Mulher (1928), de Almada Negreiros. Na década de 70 aventura-se para a sua primeira encenação, tornando-se numa das poucas mulheres encenadoras num país que guardava algumas profissões aos homens. 
Juntou-se em 1978 ao Partido Comunista Português, que integrou até ao final da vida, embora admitisse em entrevista ao Observador em janeiro passado ser uma militante pouco interventiva. «As minhas escolhas é que me fizeram lá chegar», dizia. Formou-se em encenação na Escola Superior de Encenação de Varsóvia. docente universitária e diretora do conselho do Departamento de Artes Cénicas da Universidade de Évora, cargo que ocupou até agosto de 2012, altura em que se reformou. Admitiu em entrevistas recentes que era dessa reforma que vivia, que o apoio quadrianual da DGArtes para a Escola de Mulheres nunca chegou para lhe pagar um salário. A Escola de Mulheres foi, apesar disso, um dos seus grandes contributos para as artes de palco portuguesas e o grande legado que deixou para a vitalidade do teatro no país. Fundou-a para abrir espaço para a produção e criação de teatro no feminino. Uma por todas.  

* Com Cláudia Sobral