‘Não podemos fechar os olhos ao que se passa nos lares. Esse tempo acabou’

Ex-ministro da Saúde defende plano multissetorial para os lares e propõe selos de segurança como os que foram criados para o turismo. ‘É uma realidade que daqui a dois ou três meses não podemos dizer que não conhecíamos’, alerta Adalberto Campos Fernandes. 

Depois do surto no lar da Fundação Maria Inácia Silva, em Reguengos de Monsaraz, onde uma auditoria da Ordem dos Médicos revelou esta semana que não foram cumpridas as regras estabelecidas para a prevenção e gestão de casos de covid-19, nas duas últimas semanas houve dois novos surtos em lares a assumir maiores dimensões. No Porto, um surto na residência Montepio afetou 40 idosos. Em Torres Vedras, o Lar de Nossa Senhora da Luz já foi ligado a 72 casos, 48 utentes e 24 funcionários. As regras estão definidas, mas o problema repete-se: depois de entrar nas instituições, o vírus pode espalhar-se com rapidez, apanhando população de maior risco. 

Desde o início da epidemia, cerca de 40% das vítimas mortais de covid-19 em Portugal eram residentes em lares. Estará o país a fazer o suficiente?

Para o ex-ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes, que já tinha alertado em julho para a necessidade de um plano específico para lares, residências e unidades de cuidados continuados, a preocupação mantém-se. Ao SOL, Adalberto Campos Fernandes defende que não é tempo de separar responsabilidades, mas de convergir esforços, envolvendo Saúde, Segurança Social e autarquias. «São locais de altíssimo risco e não vale a pena entrarmos num jogo de sombras. É preciso reconhecer o trabalho que foi bem feito no setor e que na maioria das instituições as coisas correm bem, mas basta ter três ou quatro com situações graves para haver um enorme impacto. Costuma dizer-se que quem vai para o mar avia-se em terra. Quem vai para o outono avia-se no inverno», apela, avançando com uma proposta concreta: tal como aconteceu com a retoma do setor turístico, em que o Turismo de Portugal atribuí selos ‘safe and clean’ aos alojamentos e empresas do setor, deveria avançar um programa de certificação das instituições residenciais de idosos, o grupo de maior risco. «Há uma história que em Portugal nos responsabiliza a todos. Não temos olhado para a população mais idosa com a atenção que merece. Houve melhorias, mas temos ainda um problema de lares ilegais, que funcionam sem estarem licenciados, lares que mesmo estando legais não cumprem regras, recursos médicos e de enfermagem insuficientes. É uma realidade que daqui a dois três meses não podemos dizer que não conhecíamos. A covid-19 pôs a nu a vulnerabilidade que existe no país», afirma Campos Fernandes, defendendo que a certificação obrigatória, um selo de garantia de que a unidade tem plano de contingência, os recursos, a formação e os circuitos definidos tendo em conta as novas exigências da covid-19, seria um passo fundamental para preparar os próximos meses, seguindo-se um plano de fiscalização com sanções definidas. «Tem de ficar definido com clareza que quem está nesta atividade tem de cumprir regras e que se não cumprir é fortemente penalizado. A atribuição deste selo e regular fiscalização, quer pelas autarquias, quer pelo setor da Saúde e da Segurança Social, seria fundamental», defende, admitindo que, em situações em que as instituições não esteja dispostas a assumir responsabilidade ou não tenham capacidade para total, têm de desistir da exploração das unidades e o Estado assumir a responsabilidade. «Não podemos fechar os olhos porque depois não há onde colocar os idosos. Esse tempo acabou. A partir do momento em que há incumprimento, tem de haver penas e responsabilização».

Chegou a haver 365 lares com surtos. Hoje são 76

No início de julho, na sequência do caso em Reguengos de Monsaraz, a DGS já tinha anunciado um reforço da fiscalização e visitas com caráter pedagógico aos lares. O SOL tentou perceber qual o balanço dessa fiscalização e se serão implementadas novas medidas, temas que foram remetidos para a conferência de imprensa desta sexta-feira, onde a questão foi abordada.

Questionado sobre as críticas da Ordem às falhas das autoridades na fiscalização em Reguengos, o subdiretor-geral da Saúde sublinhou que as responsabilidades e normas estão definidas e que a auditoria será analisada. «As autoridades de saúde locais e regionais são as entidades mais responsáveis em termos de intervenção junto a lares. Não significa que estejamos totalmente satisfeitos», assumiu Rui Portugal, adiantando que estão em curso projetos de intensificação da vigilância em Faro, Évora e Setúbal, em parceria com autarquias e Segurança Social. O balanço dessas intervenções não foi revelado, nem se serão alargadas. 

Na conferência, a responsável pela Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, que neste momento tem apenas um utente internado com covid-19, de 110 que contraíram o vírus nestas unidades de saúde num universo de mais de 9 000 pessoas, garantiu que mesmo nos lares a situação é muito diferente da que se vivia em abril. Purificação Gandra revelou que chegou a haver 365 lares com surtos ativos e hoje são 76. E neste momento há 500 residentes de lares positivos para o Sars-Cov-2 quando em abril o pico foi de 2 500. «Houve um caminho que se fez. Sabemos que não é fácil. Sabemos que estas estruturas não estão preparadas como as unidades de cuidados continuados, que têm as suas dificuldades, quer de pessoal, quer da própria estrutura física, mas o trabalho conjunto e em parceria que tem sido feito com as autarquias e intituicoes na procura de respostas e minimização destas questões é um trabalho muito positivo e que nos orgulha a todos», afirmou a responsável.

‘Lar de Reguengos não tinha plano de contingência’

Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, sublinha que os resultados da auditoria ao lar de Reguengos de Monsaraz, que a Ordem remeteu ao Governo e ao Ministério Público, mostram que existe trabalho a fazer, quer de sensibilização quer de fiscalização, que insiste que terá falhado neste caso. A investigação concluiu que o lar não tinha plano de contingência – o documento foi entretanto remetido à Ordem – e que os circuitos limpos e sujos, por exemplo, só foram implementados nove dias após a confirmação dos primeiros casos. «No início da epidemia, tudo seria mais aceitável. Agora não e por isso defendemos que deve haver um maior acompanhamento destes casos. O objetivo da auditoria foi perceber o que correu menos bem para que não se volte a repetir, ainda que haja várias responsabilidades individuais e coletivas neste caso. O que nos parece neste momento é que é preciso haver um extremo cuidado com o que se passa nos lares e que sejam frequentemente auditados e fiscalizados». Nesse sentido, Miguel Guimarães concorda com ideia lançada ao SOL por Adalberto Campos Fernandes e acredita que um selo ou certificação permitiria estabelecer um patamar de segurança e maior escrutínio. «Estou 100% de acordo. Tem de haver maior fiscalização e não podemos permitir que as pessoas mais velhas, que construíram o país, possam ficar abandonadas. Se há muitas instituições que cumprem as normas, noutras as coisas não estão a correr bem e o Estado tem de ter mão nisto, seja a ministra da Saúde ou da Segurança Social».

Mais controlo, sem guetos 

Nas últimas semanas, especialistas ouvidos pelo i e pelo SOL defenderam também um maior controlo nos acessos a lares, nomeadamente através da testagem regular de profissionais e visitas. Para Manuel Carmo Gomes, todas as precauções devem ser tidas em conta e as visitas, não sendo testadas, se possível, devem encontrar-se com os familiares no exterior. «As orientações da DGS foram para testar todos os cuidadores, penso que deveriam ser alvo de testes regulares e haver um cuidado muito especial com as visitas», defendeu em entrevista ao SOL. Também o virologista Pedro Simas já defendeu testes regulares, aumentando a proteção sobre aquele que é o grupo mais vulnerável. 

Para Adalberto Campos Fernandes, é uma questão que deve também ser analisada, sem com isso criar ‘guetos’ que isolem os idosos. Ainda que os testes sejam uma ‘fotografia do momento’, ajudariam a apertar a malha do controlo no acesso às instituições, permitindo manter-se a socialização. Para o ex-ministro da Saúde, perante o peso da covid-19 sobre os mais velhos, estes, a par dos doentes crónicos, devem ser o principal foco da estratégia nacional. «Para termos alguma hipótese de nos defendermos daquilo que estamos à espera que possa acontecer em outubro, temos de nos focar a 200% neste grupo populacional».

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