A minha terra do nunca mais…

Havia um rio que nos pulsava nas veias e nós vivíamos ao ritmo das águas e das correntes que levavam memórias para o mar.

A fronteira, para mim, ficava um pouco antes do cruzamento de Anadia, de sul para norte, um anúncio em azulejo que se mantém impassível há mais de 50 anos. Tem as imagens de um cãozinho branco e de um cãozinho preto, de raça scottish terrier, divulgando a qualidade do verdadeiro whisky escocês, sob o benemérito de Buchanan’s Choice e distribuído por todo o Portugal pela empresa de J. Cândido Silva. A partir daí, por mais longa que tivesse sido a jornada, sentia-me em casa.

O Anglia desceu alegremente a estrada que bordeja o Sardão e o Redolho, atravessou a ponte e trepou pela Estrada Nacional nº até parar em frente da casa dos meus avós, em Águeda, a Casa de São Bernardo. Vislumbrei o rio no Cais das Laranjeiras e na Praça Vermelha, que ganhou o nome por ser ponto de reunião da malta da esquerda, e recordei-me de um dia, em Rangoon, na Birmânia, quando um fulano chamado Kim, como a personagem de Rudyard Kipling, olhando para o castanho escuro da corrente do Yangoon me perguntou: «Na tua terra passa um rio?». E eu, disperso em memórias aos milhares, limitei-me a responder: «Costumava passar…».

Nas piscina fluvial do Sport Algés e Águeda, muitos da geração do meu pai, como o Saraiva da sapataria, o Acácio barbeiro (que  levou a alcunha de Kakizaki), o Manuel Alegre e o Paulo Sucena, bateram recordes nacionais e exibiram-se como vários dos melhores nadadores do país de então. Estendido sob a latada de uva morangueira, à chapada do meio-dia, até que o apito da Fábrica da Telha anunciasse a hora do almoço e fizesse disparar o barulho das Famel-Zundapp, mergulhava num mundo cor-de-laranja, vermelho-sangue e cor-de-rosa-magoada, fechando as pálpebras e fitando o sol através delas, traçando no firmamento as órbitas arbitrárias de que falava o Torga.

Havia um rio sim, um rio que nos pulsava nas veias e nós funcionávamos ao ritmo do rio. Surgíamos pelo meio do milharal correndo para o fojo como os cipaios que lutavam com Sandokan, o Tigre de Momprecém, a Ilha-que-Desaparecia. Havia uma árvore tombada sobre as águas, esticando um ramo grosso para matar a sede. O Grego e Noronha gostavam dessa árvores. Servia-lhes de prancha inventada e eu inventava flibusteiros que os fizessem caminhar sobre a prancha num castigo milenar de velhos marinheiros.

 

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