“Neste momento, Portugal corre um grande risco”

No 35.º aniversário da sua primeira vitória, Cavaco Silva lançou o seu 24.º livro, que dedica aos seus netos e às novas gerações. É duro com o Governo ao qual deu posse há cinco anos, mas escusa-se a entrar na arena política da atualidade. ‘Há demasiados insultos’ entre os políticos de hoje. Os elogios vão…

por Sebastião Bugalho

Continua a ir trabalhar todos os dias. No gabinete do Sacramento, sempre acompanhado por Maria Cavaco Silva, não deixa escapar um relatório da Comissão Europeia ou um estudo do Banco de Portugal. Continua a escrever, ora memórias, ora artigos científicos como economista, e mantém uma distante mas atenta vigilância à vida do país. O seu novo livro – Uma Experiência de Social-Democracia Moderna – é, nas suas palavras, diferente dos restantes. Cavaco, aos 81 anos, permanece uma voz ativa no Conselho de Estado e pontuou a sua pós-presidência com posições marcantes: a substituição da procuradora-geral da República, a eutanásia ou, mais recentemente, a obrigatoriedade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Nesta entrevista, relembra as primeiras conversas com Sá Carneiro, o congresso da Figueira, as noites em que limou as arestas finais da revisão constitucional de ‘89 com Constâncio e Vitorino e a projeção das grandes obras públicas dos seus Governos, que preenchem os capítulos da sua última publicação. Nela, como ao longo da conversa, há uma constante: a família. Nas vésperas de celebrar 57 anos de casamento, descreve a vida familiar como «uma alegria permanente». Nos tempos livres, gosta de ver Netflix. Na política, 35 anos depois da primeira vitória, Aníbal Cavaco Silva assume «orgulho» no que deixou feito. Esta é parte da sua história.

Neste seu último livro, afirma que somente os seus Governos foram verdadeiramente social-democratas em Portugal…

Eu tive dez anos, mais de oito com maioria absoluta. Foram condições únicas para aplicar essa social-democracia. Imagine o Dr. Passos Coelho, obrigado a aplicar um programa para tirar Portugal da bancarrota, que era a herança que tinha recebido do Governo socialista anterior. Teve que subordinar-se a um programa que tinha sido negociado pelo Governo que o antecedeu. Eu tive dez anos… Tive uma certa sorte… Durão Barroso teve um Governo bastante curto, Pinto Balsemão teve um Governo bastante curto e o mesmo aconteceu com Santana Lopes. Eu… alguns dizem que é sorte ter chegado a primeiro-ministro naquela altura… Mas cheguei porque ganhei eleições… Repare que a nossa social-democracia tem uma originalidade na sua aplicação, que é o facto de partirmos de uma sociedade estatizada sem esse ser o resultado de uma vontade do povo. Enquanto os outros países admitiam nacionalizações como resultado de idas às urnas, da vontade popular, aqui não. Toda essa estatização da economia e da sociedade portuguesa havia ocorrido sem ouvir os portugueses, sem uma força democrática por trás. Foi esse país estatizado que eu recebi há 35 anos, quando fui eleito primeiro-ministro pela primeira vez.

E acredita que os seus netos alguma vez viverão num Portugal com social-democracia?

Eu continuo a dizer que os princípios da social-democracia têm uma grande atualidade. Olhemos para eles: A concertação social perdeu atualidade? O acesso aos cuidados de saúde? A igualdade de oportunidades? A justiça na tributação do rendimento? A justiça social e a solidariedade? A defesa do Ambiente e do ordenamento do território? São princípios de enorme atualidade. Se um Governo tiver oportunidade de os aplicar, penso que seria a melhor resposta para Portugal e que conseguiríamos aproximar-nos mais rapidamente do rendimento médio da Europa. Neste momento, Portugal corre um grande risco: ser, se as coisas não se inverterem em breve, a lanterna vermelha a nível de desenvolvimento dos países da zona-euro. Quem é que ainda está atrás de nós? A Letónia, que atualmente cresce mais rapidamente do que Portugal. A Grécia, em recuperação da situação em que se encontrava. A Eslovénia, a Eslováquia, Malta, a Estónia, a Lituânia, a República Checa, já estão todos à nossa frente. Como português, sentiria uma grande tristeza ao ver Portugal como lanterna vermelha da Europa. Daí a grande responsabilidade dos governos da atualidade – e dos políticos em geral da atualidade, incluindo a oposição – em inverter esta situação. Portugal tem vindo a cair nessa lista de países da União Europeia e da zona-euro. Num estudo do Banco de Portugal publicado no final do ano passado, lê-se que o rendimento per capita com base na paridade do poder de compra em 2018, comparado com a média europeia, foi inferior àquilo que eu deixei em 1995, quando terminei as minhas funções como primeiro-ministro. Não sou eu que o digo… É o Banco de Portugal.

E como inverter essa situação?

Quando olhamos para a realidade europeia, apercebemo-nos que predominam os Governos de coligação. Portanto, nem sempre é fácil manter a aplicação de um conjunto coerente e consistente dos princípios da social-democracia. Mas podem encontrar-se situações em que a maioria de linhas de orientação dominantes num governo sejam social-democratas… Sá Carneiro tinha uma qualidade fundamental para dirigir um governo social-democrata: tinha capacidade de liderança. Isso é fundamental para aplicar uma agenda re-for-mis-ta. Reformista.

Acredita que um governo de coligação em Portugal conseguiria essa veia reformista?

Em Portugal? Se me pergunta para o futuro, eu digo que sim… Neste momento, em tempos de pandemia… não quero fazer avaliações da atuação do Governo. Mas se olhar ao Governo que antecedeu este tempo – o chamado Governo da ‘geringonça’ –, e tomando como referência os princípios da social-democracia, penso que não seria difícil escrever um livro demonstrando que os valores da social-democracia foram aplicados muito pouco ou quase nada.

Em que sentido?

No caso da Saúde, por exemplo, um dos princípios fundamentais da social-democracia é colocar os interesses dos utentes no centro da política de Saúde, assegurando-lhes serviços de qualidade. Nos quatro anos de Governo da ‘geringonça’, isso não aconteceu: o subfinanciamento, a redução para 35 horas… Tudo isto é do conhecimento público.

Acredita que terá consequências na gestão da pandemia?

A pandemia coloca enormes desafios à governação de qualquer país. Por isso, lamento, mas evito pronunciar-me publicamente sobre a ação do Governo neste período. Estando afastado da política ativa, não quero fazer comentários sobre as forças políticas que estão na governação nem sobre as forças políticas que estão – ou dizem estar –  na oposição.

Mas ficando, então, por falar do Governo a que deu posse, que governou de 2015 a 2019. Sente que o facto de ter forçado o compromisso escrito de uma série de salvaguardas entre o PS e os seus parceiros parlamentares contribuiu para a estabilidade política que se viveu nesses anos? Sente-se autor dessa estabilidade, hoje inexistente? No lançamento do livro criticou a ‘tensão estéril e sem coerência’ que se vive atualmente…

Bem… Eu torno a repetir que não quero entrar em comentários sobre a vida política e governativa atual… O que lhe posso responder – e que confirmei nas memórias que escrevi – não coincide totalmente com o que me está a dizer. O Dr. António Costa havia assinado um documento a que chamaram ‘posições conjuntas’, com o Bloco de Esquerda, com o PCP e com Os Verdes. Ele entregou-me esses documentos, eu analisei-os e encontrei algumas omissões importantes. Na altura, quis munir-me do máximo de garantias da parte do primeiro-ministro de forma a que, ao dar posse a esse Governo, este conseguiria uma certa estabilidade, uma certa durabilidade e uma certa credibilidade internacional. Se depois foi ou não foi assim, já não é da minha responsabilidade porque deixei de ser Presidente da República… Mas era essencial que os compromissos internacionais de Portugal fossem respeitados – em particular com a União Europeia, na zona-euro, e em matéria de Defesa, na NATO. Antes de indigitar o primeiro-ministro, entreguei-lhe também um documento escrito, pedindo-lhe que confirmasse uma série de dúvidas que eu tinha quanto a moções de confiança, à concertação social, ao sistema financeiro, e ele respondeu-me, também por escrito. A minha opção, na altura, não era fácil, na medida em que não podia dissolver o Parlamento. E deixar o Governo que não tinha passado no Parlamento em gestão, à espera que chegasse o próximo Presidente da República e que tomasse depois ele uma decisão… Achei que não devia fazer isso.

Neste seu período pós-presidencial, escreveu três livros em quatro anos, deu duas grandes entrevistas, tomou uma posição pública sobre os resultados eleitorais do seu partido e aceitou um convite para ser orador na universidade de verão da JSD. Chamar-lhe-ia uma pós-presidência ativa?

Nem por isso… Tenho sido bastante contido. Fui também apresentar o livro de um homem que trabalhou comigo, o Joaquim Sarmento, que considero um dos economistas portugueses com maior conhecimento de finanças públicas e com pensamento estratégico para Portugal. Mas tenho recusado dezenas de convites para falar e para escrever. Tenho evitado. As declarações que fiz foram muito limitadas… A não-recondução de Joana Marques Vidal… A eutanásia… Considero que essa é uma das coisas mais graves com que os deputados estão neste momento confrontados: a questão da vida e da morte. Devemos ter presente o que tem acontecido num país como a Holanda, em que um médico, que havia sido inicialmente a favor da eutanásia, deu uma entrevista, que saiu aqui em Portugal, em que diz ter testemunhado pressões de familiares e de médicos para que pessoas idosas aceitassem ser mortas. Considero que é uma das coisas mais graves do ponto de vista moral que o nosso Parlamento poderia fazer. Não há mais de uma dúzia de países no mundo que o permitam. E seríamos nós, que somos quase o último em matéria de desenvolvimento na zona-euro, com a pobreza que temos e as mortes de idosos em lares que têm havido, a aprovar uma lei que facilita a pressão para que idosos se deixem matar? É algo que não consigo moralmente conceber que os representantes do povo português aceitem.

No livro, através de um episódio humorado entre cobras e rãs, refere que as boas intenções europeias podem, por vezes, produzir maus resultados. Detetou essa tendência em aspetos mais estruturais?

Eu fui primeiro-ministro – e talvez aí também tenha tido sorte – num tempo em que aqueles que são os grandes países europeus tinham uma atenção particular à coesão económica e social. Em geral, foram aceites – e bem aceites – as propostas apresentadas por Jacques Delors, no sentido de reforçar substancialmente a solidariedade em relação aos países menos desenvolvidos, de que Portugal foi um grande beneficiário. A aprovação de um Programa Especial para a Indústria portuguesa, que agora até se quer reavivar, um programa para a modernização da indústria têxtil, um programa especial para os Açores e para a Madeira… Houve sempre uma atenção especial para dotar o orçamento comunitário de verbas avultadas para apoiar os países da coesão. Mas, repare, os programas de apoio a Portugal depois do meu Governo foram ainda maiores do que aqueles que recebi nesse tempo… Não venham, portanto, dizer que as obras que fizemos se deveram apenas aos fundos comunitários. Claro que foram importantes. Mas o eng. Guterres recebeu ainda mais e o eng. Sócrates não recebeu certamente menos.

Não tem, nem temos, então, razões de queixa da União Europeia.

Eu não tenho queixas significativas sobre a forma como Portugal foi tratado pela União Europeia durante os meus anos dez anos, não. Como disse há dias no Conselho de Estado: bem dita a hora em que Portugal entrou na União Europeia e se tornou membro da zona-euro. Imagine que neste momento não éramos membros da união monetária e não tinhamos acesso aos fundos do Banco Central Europeu. Imagine só isso. Imagine a possibilidade de ainda aqui andarmos com o escudo, a ser permanentemente desvalorizado, a sofrer medidas duríssimas para manter a balança de pagamentos equilibrada. Imagine. Tenho de dizer que a atual presidente da Comissão Europeia, Von der Leyen, e a sua Comissão fizeram um trabalho notável ao conseguirem que fosse aprovado o New Generation European Union, que representa 750 biliões de euros e aceita que, em parte, a União Europeia possa emitir títulos de dívida com credibilidade e segurança mundial para financiar projetos nos Estados-membros – uma parte sob forma de subvenção –, apoiando os países que enfrentam uma situação de recessão. A União ganha uma função central de estabilização macroeconómica, o que é um passo fundamental, ainda que dado de forma temporária. Espero que se possa transformar numa função permanente, nomeadamente para responder aos choques assimétricos de cada país. Quando acontecem recessões, não basta que os países ajam isoladamente. 

Alguns dos seus críticos apontam a Agricultura como um setor em que as intenções europeias produziram maus resultados em Portugal. Como lhes responderia? 

Como dizia há pouco, as negociações que desenvolvemos com as instâncias europeias acabaram, no fim, por ser sempre benéficas para Portugal. As negociações mais difíceis que enfrentei enquanto primeiro-ministro na União Europeia ocorreram no final de 1987 e inícios de ‘88, no quadro do pacote Delors I. Conseguimos apoios adicionais significativos para a Agricultura e para a Indústria em relação aos apoios que constavam no protocolo de adesão, assinado pelo Governo que me antecedeu. No Conselho Europeu de Copenhaga, foi reconhecida a especificidade da agricultura portuguesa e aumentaram-se os apoios a Portugal, sendo que até as conclusões do Conselho incluíam um anexo que referia apoios adicionais para Portugal enfrentar a reforma da Política Agrícola Comum. Isto foi da maior importância para a modernização da nossa agricultura. 

Falando com vários dos seus apoiantes e colaboradores, todos utilizam regularmente a expressão ‘ao contrário do que se diz’. É assim quando referem a sua ligação aos portugueses em campanha ou a sua consciência social enquanto governante. Por que acha que é assim? Por que acha que esse seu legado não chegou de forma evidente aos dias de hoje? 

Os tempos são outros… Talvez o aparecimento da internet, das redes sociais, tenha mudado muita coisa. Eu penso que nunca mais aconteceram campanhas eleitorais como as que eu vivi enquanto primeiro-ministro. Isso vê-se nas imagens. Eu encontrava milhares e milhares de pessoas pelo país inteiro. Sem isso seria impossível ter 50,2% dos votos numa eleição. Quatro anos depois de escreverem que isso nunca mais aconteceria, a votação subiu duas décimas, para 50,4%. Era preciso uma adesão popular muito forte para ter essas votações. Talvez alguns analistas, sofrendo de algumas frustrações, prefiram resumir isso à sorte dos fundos europeus, esquecendo que os outros, depois, também os tiveram… Mas, de facto, o que mais me orgulho dos meus mandatos foram os enormes avanços em matéria de educação e de justiça social.

Quando diz que os tempos são os outros, que mudança o surpreende mais hoje em dia? 

O que mais me impressiona hoje, até pela minha educação e maneira de ser, é a agressividade na linguagem dos políticos. As minhas relações com os políticos da oposição – do Partido Comunista ao CDS – foram sempre cordiais. Hoje, há demasiados insultos na política, demasiadas falta de respeito. E isso afasta os eleitores, particularmente os jovens, que não se revêem nisso. A mim, surpreende-me muito que o insulto se tenha tornado tão corrente no combate político – e eu participei em muitos, como sabe. Mas nunca olhei um adversário como um inimigo. Nunca ouvi insultos, nunca insultei ninguém. Agora é comum. Eu nunca quis construir uma ideologia própria – minha –, mas antes um método de exigência, de trabalho com os ministros, de saber bem o que estavam a fazer para discutirmos com toda a franqueza. Todos os assuntos importantes iam a Conselho de Ministros. Cumpríamos as promessas feitas. Não estavamos, um ano depois de chegar ao Governo, a culpar governos anteriores. Hoje, cinco anos depois, vejo-os culparem o Dr. Passos Coelho, que fez, ainda por cima, uma obra altamente meritória e tirou Portugal da bancarrota. A falta de respeito dos políticos entre si é uma das coisas que mais me choca. 

Acha que se fosse um homem da esquerda seria recordado de outra maneira? 

Disse-lhe há pouco e repito: eu não receio o julgamento dos portugueses nem o julgamento da História. Com certeza que cometi alguns erros, todos cometem. Mas, como resulta deste livro, tenho orgulho na obra que deixo. Tive uma boa equipa. 

Teria feito o quê de forma diferente? 

Cada político vive o seu tempo, com as circunstâncias do seu tempo. A governação é adaptada a essas circunstâncias. Eu enfrentei dificuldades e fui criticado – e surpreendeu-me ser criticado – quando fiz a reforma da tributação em Portugal. Havia sete impostos sobre o rendimento e eu fiz o IRS e o IRC, e pensava que teria o apoio do Partido Socialista. E não tive. Tal como pensei que na liberalização da comunicação social teria o apoio do Partido Socialista. E não tive. O mesmo com a abertura da televisão. E não tive. Mas orgulho-me muito da revisão constitucional de ‘89. Às vezes imagino esse diálogo, com Vítor Constâncio e António Vitorino, noite adentro em São Bento, eu social-democrata, eles socialistas, para acordamos os pontos finais. Penso que hoje algo assim seria impossível! 

Seria impossível porquê?

(sorri) Precisamente pelas más relações entre os políticos… 
Mas o Presidente também guarda boas memórias das suas relações com os políticos europeus, por exemplo?
O Chanceler Köhl. Foi um homem que como criança viveu a guerra. Para ele, o projeto europeu era a paz entre os europeus. Lembro-me de o ouvir, emocionado, a contar o bombardeamento da sua aldeia. A Margaret Thatcher era uma mulher que se apresentava no Conselho muito bem preparada. Batia-se com uma grande energia. Sentava-se ao meu lado – a Holanda à minha esquerda, o Reino Unido à minha direita –  e mantinhamos uma boa relação. Ela referia muitas vezes que eu tinha estudado em York quando ela era ministra da Educação. E eu lembrava-me de assistir a manifestações contra ela, mas à inglesa: com os polícias de cada lado e a terminarem todos no pub.

Mas o Presidente não ia às manifestações…

Eu não! (risos) Eu queria era estudar para rapidamente fazer as provas de doutoramento.

E Francisco Sá Carneiro foi a inspiração do seu percurso enquanto homem público, na altura?

Foi ele que me convenceu a aceitar o lugar de ministro das Finanças e do Plano, depois de um diálogo entre nós os dois, na sua casa, que se prolongou por três conversas. Foi pela mão dele que entrei na vida política. Antes, havia tido alguns contactos como conselheiro em matérias económicas, na medida em que ajudei a escrever o programa do PSD, e participado no primeiro congresso enquanto membro do gabinete de estudos.

E como descreveria a relação entre ambos? 

Na governação, ele era o meu grande apoio, num tempo em que era necessário nem sempre aceitar as propostas orçamentais vindas dos diferentes ministros. Ele esteve sempre ao meu lado nos conselhos de ministros. Além disso, tivemos contactos pessoais. A minha mulher e eu estivemos com ele e com a Snu no Algarve e na Madeira. Ganhei-lhe uma profunda admiração. O seu sentido de Estado, a forma como exercia o poder com grande dignidade, a sua capacidade de liderança. Dizia-se que tinha ‘razão antes do tempo’, mas isso devia-se à sua clarividência. Aceitou, por tudo isto, a via reformista da social-democracia bastante inspirado, penso eu, pela social-democracia alemã e pela social-democracia sueca. Guardo-lhe um profundo respeito. Como disse no lançamento deste livro, consultei o meu arquivo pessoal na sua elaboração e encontrei dez textos que havia escrito ao longo do tempo em homenagem ao político e ao homem que Sá Carneiro foi. Lembro-me, por exemplo, de inaugurar o monumento em sua homenagem, no Porto. Entendi hoje que era tempo, ao completarem-se 40 anos sobre a sua morte, a 4 de dezembro de 1980, de lembrar alguns valores que inspiraram Sá Carneiro e a forma como exerceu o poder.

Falou de Sá Carneiro como político, mas também como homem. Como o recorda em termos de personalidade?

No início, talvez influenciado pela comunicação social, via Sá Carneiro como sendo impulsivo. Reagia de forma forte à confusão política que reinava no país a seguir ao 25 de Abril. Mas rapidamente reconheci que ele tinha razão, que aquela era a forma de ele conseguir realizar o seu sonho, que era fazer de Portugal um país moderno, ocidental e integrado na União Europeia. Uma ‘democracia ocidental’ era algo que ele referia frequentemente. A sua luta foi uma luta difícil, atendendo ao Conselho da Revolução que então existia. E daí a coragem… Aqueles discursos fortes… Eu percebi que era um homem de uma coragem extraordinária, quando comparado, por exemplo, com outros políticos em Portugal. Era um homem da verdade, mas que podia exprimi-la talvez, para alguns, de forma violenta ou agressiva. Ao chegar a Portugal vindo de Inglaterra, fui moldando a minha opinião em relação a Sá Carneiro. 

Em que medida?

Eu vinha de uma democracia madura… Na Grã-Bretanha tinha estado quase três anos e ia vendo como decorriam os debates políticos, a discussão política num país com séculos de democracia. Chocou-me, ao chegar a Portugal, deparar-me com toda a confusão e com tudo o que se dizia. Eu achava: ‘esta gente não está boa da cabeça, isto vai tudo rebentar’. E Sá Carneiro aparece como um homem que dizia coisas que me pareciam certas. Denunciava a confusão que reinava então, que era, como sabe, uma tentativa totalitária de tomada do poder. Eu penso que os nossos jovens – e é pena – não sabem quem foi Sá Carneiro. Ele foi primeiro-ministro durante apenas 336 dias. E pensei que era importante lembrar os traços fundamentais. Nisso, fui muito influenciado pelas conversas com os meus netos. Entendi que tinha de escrever, contrariamente a um artigo que desaparecesse amanhã ou depois de amanhã, de forma a que ficasse registado para futuro. Para que os jovens da sua geração pudessem conhecer melhor Francisco Sá Carneiro e também infra-estruturas e grandes projetos que os meus Governos realizaram e que constituiram marcas importantes da modernização e do desenvolvimento do país naquele tempo, de aproximação à Europa como nunca mais voltou a acontecer.

Se Sá Carneiro já era excecional na altura, hoje, para si, seria excecional de que maneira?

É-me difícil responder a essa questão… O mundo mudou… A grande vantagem que Sá Carneiro tinha – e que eu penso também ter tido – é ter adotado uma ideologia não dogmática, não determinista, que se adapta à mudança dos tempos. Isso observei logo e julgo que ele também, na social-democracia alemã e na social-democracia sueca, que a princípio haviam adotado princípios marxistas – ainda aceitando fazer um controlo sindical e utilizando os sindicatos como correias de transmissão, como hoje algumas forças políticas em Portugal ainda tentam fazer – e depois se adaptaram à vida moderna. Estou convencido de que, pela sua inteligência, seria capaz de se adaptar às mudanças que ocorreram no mundo, desde logo com Portugal ter-se tornado membro da União Europeia e da união monetária. E, evidentemente, à alteração geopolítica que ocorreu… O desaparecimento da União Soviética, o destaque que a China ganhou no plano económico e geopolítico… Acredito que Sá Carneiro se adaptaria a tudo isso.

Qual foi a conversa mais marcante que tiveram do ponto de vista político? 

Na parte final do mandato da Aliança Democrática [AD], eu já tinha algumas dificuldades como ministro das Finanças em manter uma linha de orientação que considerava fundamental para o futuro, embora tendo Sá Carneiro ao meu lado. As coisas estavam a correr muito bem. Aproximavam-se umas eleições e a minha experiência política era limitada ou quase nula. Eu caí na Assembleia da República vindo do anfiteatro onde dava aulas… Aí, disse-lhe que depois do ato eleitoral quereria voltar a diretor do gabinete de estudos do Banco de Portugal, coisa que gostava muito, e que queria voltar à vida universitária. Tive uma conversa com ele e ele disse-me que ‘não, o senhor não se pode ir embora, tem de ficar’. Não digo que essa tenha sido uma conversa desagradável, mas foi difícil para mim. Ele dizia-me: ‘O senhor está a fazer esta obra, que o Governo considera correta’ – e os resultados eram bons: a queda da inflação, a diminuição da desvalorização da moeda, a diminuição do desemprego, o crescimento económico… – ‘então quer abandonar tudo isto?’, insistia ele. Tinha uma capacidade de argumentação notável… E foi difícil para mim na altura… Cheguei mesmo a escrever-lhe uma carta a expor-lhe o que eu considerava ser necessário para continuar. E essa foi uma conversa difícil, como já fora aquando do convite para ir para o Governo.

Porquê? 

Eu tinha acabado de fazer as minhas provas para professor extraordinário e queria ir para catedrático a seguir. Houve uma reunião em que consegui garantias daquilo que achava fundamental. Sá Carneiro chamou Freitas do Amaral, que era vice-primeiro-ministro, para que não só ele aceitasse como também Freitas do Amaral. Depois houve uma reunião entre os ministros, antes de tomarem posse, em que fiz uma exposição sobre o que considerava ser a política económica correta para o país. 

Foi enquanto ministro da AD que privou com Freitas do Amaral, levando-o mais tarde a apoiá-lo como candidato à Presidência?

No Governo, Freitas do Amaral foi para comigo uma pessoa muito correta – mesmo muito correta. Até nos momentos em que fomos confrontados com a tragédia da morte [o desastre de Camarate] e ele assumiu interinamente as funções de primeiro-ministro foi uma pessoa muito correta. Isso [o apoio à candidatura presidencial de Freitas] passa-se cinco anos depois, quando ocorre o congresso da Figueira da Foz. Já se sabia que havia um candidato do lado do Partido Socialista e Freitas do Amaral tinha-me dito que pensava apresentar-se como candidato. E fazendo a ponderação, tendo presente que não tinha funcionado muito bem o Governo do Bloco Central, cheguei à conclusão de que o PSD não tinha melhor candidato, embora soubesse que a reação do lado do congresso e dos militantes não seria nada positiva. Mas era a minha convicção que ele poderia ganhar, apesar de alguns votos de militantes do PSD irem, com certeza, para outro candidato. Na intervenção que fiz, pedi que não me interrompessem com palmas, que ouvissem a minha argumentação, e expliquei o meu ponto de vista com toda a abertura e sinceridade. Pensava que ia ser apupado no fim. Mas não fui. 

Foi eleito presidente do partido.

E de forma inesperada. As pessoas não acreditam que eu fui fazer a rodagem ao Citroen que tinha acabado de comprar… Mas eu disse à minha mulher: ‘Vamos à Figueira da Foz, fazemos a rodagem e eu vou dizer umas quantas verdades aos congressistas’. Ninguém acredita, mas foi mesmo assim. Nunca pensei sair de lá presidente do PSD. Veja bem: eu nem tinha moção de estratégia!, que era condição necessária para se ser candidato… Não tinha um papel além do discurso. Foi durante o congresso que uns quantos militantes resolveram transformar o meu discurso numa moção. São eles que a redigem. 

Lembra-se de quem era o primeiro signatário? 

Creio que terá sido o Fernando Alberto [falecido esta semana, e a quem o Presidente Cavaco Silva deixa uma nota de pesar nesta entrevista]. Mas foram eles que alinhavaram uma moção de estratégia que tinha pouco mais do que uma página e a apresentaram. Como é que eu podia sair de Lisboa já com o pensamento que poderia sair de lá como presidente do partido se nem preenchia a condição necessária para ser candidato, que era ter uma moção? E olhe que foi um problema grande para conseguir que eu fosse submetido a votos! 

Então? 

O Alberto João Jardim deu uma ajuda, era o presidente da mesa (risos).

No livro fica claro que, tanto no espírito dos seus Governos como no tributo que faz a Sá Carneiro, gosta de uma governação ‘fazedora’. 

‘Fazedor’ é um nome que utilizava muitas vezes, na altura. Criticavam-me por não me verem como um ‘político’, diziam que me faltavam qualidades de político para fazer ‘manobras’, para ter uma boa ‘verborreia’. Faltava-me tudo isso para ser um ‘político’, diziam. Então eu dizia que era um ‘fazedor’.

Sentiu falta desse poder mais executivo quando foi Presidente da República? 

Não. Eu penso que o facto de ter sido primeiro-ministro foi muito útil para a forma como atuei enquanto Presidente da República. Tive a experiência de contacto – primeiro, com o general Ramalho Eanes, que me nomeou para o meu primeiro Governo – e depois, a maior parte do tempo, com o Dr. Mário Soares. Essa foi uma experiência importante. Como ‘fazedor’, os dez anos de primeiro-ministro chegaram. Ali, [em Belém], foi uma outra função, que eu, nos dois livros que publiquei [Quinta-feira e Outros Dias, volumes I e II], descrevo em pormenor. Não receio nem o julgamento da História nem tão pouco o julgamento dos portugueses. De tudo aquilo que fiz enquanto ministro das Finanças, primeiro-ministro e Presidente da República deixei testemunhos de pormenor à disposição dos portugueses. Com este último, publiquei 24 livros. Uns mais formais, outros mais pessoais, em que creio ter cumprido um dever: dar testemunho daquilo que fiz, como atuei, como me comportei, como tomei decisões. Sou um defensor destes testemunhos, muito correntes em Inglaterra ou nos Estados Unidos, para que os portugueses possam julgar e fazer a sua apreciação. Como disse Luís Marques Mendes há dias [ao apresentar a obra]: há muitos que falam, há poucos que escrevem. 

Vê uma diferença do valor das palavras no futuro? 

Quando se escreve, está-se sujeito à observação da coerência intertemporal. Qual foi a posição que se assumiu num momento e como se a assume passado determinado tempo, sem justificá-la com a alteração das circunstâncias. Se as circunstâncias do mundo mudam, o político pode ter posições diferentes. Mas penso que há muitos políticos em Portugal que receiam essa verificação da sua coerência entre os tempos. Eu acredito que é um dever prestar contas, embora este último – Uma Experiência de Social-Democracia Moderna – não seja bem um típico livro de memórias… 

Em que medida?

Em duas coisas que o diferenciam. A primeira é a minha tentativa de revisitar alguns traços do pensamento de Francisco Sá Carneiro. A segunda é o facto de contar muitas histórias e impressões pessoais… Isso distingue este livro dos outros. Comecei a escrevê-lo pensando nos meus netos e nos jovens da geração deles. Ia-me perguntando: será que eles sabem isto? Será que sabem toda a complexidade que foi negociar a construção da barragem do Alqueva ou a fábrica da Autoeuropa – que é ainda hoje o maior investimento estrangeiro alguma vez feito em Portugal? Ao consultar os meus arquivos pessoais, entendi que devia revelar a correspondência que troquei com o presidente da Ford e com o presidente da Volkswagen, por exemplo. Lembro-me bem do dia, a 26 de abril de 1995, em que experimentei na pista de ensaios o primeiro carro produzido por mão de obra portuguesa. Há projetos e infraestruturas que são utilizadas todos os dias por milhares de portugueses e eles não sabem como foi decidido, executado, planeado… Os obstáculos que foram enfrentados… Este livro pretende retificar isso. Vários analistas difundiram a ideia de que o meu terceiro Governo já não tinha dinamismo, que estava cansado e já não fazia obra. O livro demonstra que se trata de uma ideia falsa.

Refere-se às grandes obras em que foca cada capítulo. 

Foi nos últimos anos do meu mandato enquanto primeiro-ministro que foi decidida a construção do Museu de Serralves e garantido o seu financiamento. Foi construída a Ponte do Freixo e a autroestrada Porto/Amarante. Foi realizada a maior obra de reabilitação urbana desde o tempo do Marquês de Pombal, na zona oriental de Lisboa, onde hoje é o Parque das Nações. Foi construída a fábrica da Autoeuropa e tornada irreversível a construção do Alqueva. Foi decidido e construído o gasoduto para a instalação do gás natural. Foi tomada a decisão de avançar com a Ponte Vasco da Gama e com o comboio da Ponte 25 de Abril. Foi concebido e arrancou o programa de erradicação das barracas das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Foi concebido e arrancou o programa das aldeias históricas de Portugal. Arrancaram ainda as obras de ampliação do aeroporto do Funchal. Pode ser difícil de engolir, mas a verdade é que o meu terceiro Governo demonstrou um impressionante dinamismo até ao seu último dia.

E o registo mais familiar e mais intimista do livro, por outro lado, tem algum motivo de fundo? 

A família tem sido um pilar ao longo de toda a minha vida: a minha mulher, a minha filha, o meu filho, o meu genro, a minha nora, os meus cinco netos… Todos vivemos uma convivência alegre quase permanente. Os meus filhos vivem numa casa a menos de cem metros da minha. Ainda hoje, dois dos meus netos almoçaram comigo. Com a pandemia, eles ficam numa ponta da mesa, e nós noutra (sorri). Uma das decisões mais importantes e mais sensatas que tomei foi o casamento com a minha mulher – e penso que ela acha a mesma coisa (sorri novamente). Dentro de poucos dias, completamos 57 anos de casamento.

Tem alguma memória em particular desse tempo? 

Passados dez dias de casar, embarquei para Moçambique para o serviço militar. Forcei junto das entidades militares – e não queriam aceitar – que ela me acompanhasse. Apesar de 57 anos de casados, nós adoramos estar os dois sozinhos em casa, a falar, a ver televisão. É claramente um amor para a vida. Foi uma sorte que tive. Ajudou-me muito ao longo da vida política.

Como, em concreto? 

Ter atrás uma família assim é muito diferente de ter uma família dividida com tensões. E isso facilitou-me o exercício de funções como primeiro-ministro e como Presidente da República. Chegar a casa e ter o conforto da mulher, dos filhos, ajuda muito mais do que aquilo que se possa imaginar. Como primeiro-ministro e até como Presidente da República, passa-se por tensões muito fortes. 

Falou de verem televisão juntos. O que vêem?

Vejo muitos programas na televisão. Ontem vi o último filme do David Attenborough, que acaba de o fazer já com noventa e tal anos!

E gostou?

Gostei imenso. Aquele homem desempenhou um papel importantíssimo na defesa do meio ambiente a nível mundial. Tenho um familiar que vive em Londres que me diz que o Attenborough é mais popular do que a Rainha! (sorri) Os programas de natureza vejo todos, exceto, como disse no livro, os sobre cobras. E vejo também o Poirot. Debates é que não vejo nenhuns – já como Presidente da República não via. Ao domingo, costumava haver alguma confusão lá em casa porque jantávamos todos – o que agora suspendemos devido às regras sanitárias –  e nem o Dr. Marques Mendes eu podia ouvir em direto porque o barulho era grande (sorri novamente). Filmes sobre a natureza, sobre corais, não perco um. 

Então tem Netflix?

Ah, sim, com certeza. Os canais normais, em matéria de filmes, não são a mesma coisa…

Uma pergunta final, Presidente. Se algum dia um dos seus netos, num dos jantares de domingo, lhe dissesse que queria ir para a vida pública, o que lhe responderia? 

Bem, como princípio, rigor. E um valor que para mim é chave: a honestidade. Depois, servir o país. Servir o país com essa honestidade. É uma questão basilar para mim. Mas acho que são os meus netos que têm de escolher o que querem fazer na vida. Eu não iria contrariar. Um, atualmente, até joga futebol, embora esteja também na universidade, em engenharia agronómica (sorri). Eu acredito que eles serão capazes de encontrar o melhor caminho para eles. Se tiverem de servir o país, que o façam com um espírito fazedor. Que preservem os valores que receberam, incluindo a importância da família. É o que desejo.