Uma candidatura demasiado oportuna

Passou quase despercebido o anúncio da candidatura ibérica, de Portugal e de Espanha, à organização conjunta do Mundial de futebol de 2030, que concorrerá com as candidaturas do norte de África (Marrocos) e da América do Sul (Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile).

Passou quase despercebido o anúncio da candidatura ibérica, de Portugal e de Espanha, à organização conjunta do Mundial de futebol de 2030, que concorrerá com as candidaturas do norte de África (Marrocos) e da América do Sul (Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile).

É normal. Com o número de novos casos de covid-19 a disparar e com as querelas dos partidos da esquerda em torno do Orçamento do Estado para 2021, o protocolo firmado por Fernando Gomes (pela Federação Portuguesa de Futebol) e Luís Rubiales (pela Real Federação Espanhola de Futebol), por ocasião do encontro amigável entre as duas seleções nacionais no início de outubro, não sobressaiu na agenda mediática.

Apesar de Fernando Gomes e Luís Rubiales não terem decidido agora e sem prévia consulta aos Governos dos dois países – liderados por António Costa e Pedro Sánchez, ambos socialistas – lançar a candidatura à organização do maior evento do futebol mundial.

Mas o anúncio formal do protocolo não teve participação de qualquer membro dos Governos nacionais nem de quaisquer outras entidades – apenas dos dois presidentes das respetivas federações.

A verdade, porém, é que a candidatura coincide no tempo (a próxima década) com o plano de recuperação económica pós-covid-19 e a atribuição a Portugal e a Espanha de um pacote de ajudas financeiras sem paralelo na história da União Europeia.

Ainda nesta quinta-feira, António Costa esteve na apresentação formal do Programa Nacional de Investimentos até 2030, que fez acompanhar do anúncio em manchete no Público da linha de alta velocidade entre Porto e Lisboa (que reduz a viagem entre as duas maiores cidades do país para 1h15 – praticamente igual a uma outra manchete do Público de 1999). 

Costa, rindo, concluiu a sua intervenção dizendo que «daqui a 10 anos não se anuncie em primeira página a mesma obra que se anunciou em primeira página há dez anos, mas se anuncie simplesmente: está feito». Convenhamos… 

Se o investimento na ferrovia – que ultrapassou todos os limites da degradação em décadas de desinvestimento – é obviamente fulcral para a competitividade da economia nacional, não é a redução da distância temporal entre Lisboa e Porto que mais releva. 

É, sim, a ligação à rede ferroviária de alta velocidade (ou velocidade alta) europeia e particularmente de mercadorias. Até para que portos como o de Sines, Lisboa ou Leixões possam também ter outra capacidade concorrencial e disputar rotas com outros portos, de Espanha, de França ou de Marrocos.

Por isso, a ligação de velocidade alta (na bitola espanhola) de Sines e Lisboa a Badajoz (e a Madrid e à Europa) e de Leixões a Vigo ou a Salamanca (e à Europa) é muito mais relevante para a competitividade da economia nacional, e nomeadamente dos setores exportadores, do que a ligação entre Lisboa e Porto.

Gastar milhões e milhões para poupar meia dúzia de minutos aos passageiros do Alfa Pendular não faz sentido, ainda que possa render uns poucos votos.

Já investir na ligação à rede ferroviária de distribuição europeia é obrigatório para as empresas exportadoras portuguesas não perderem definitivamente o comboio europeu.

Voltando ao futebol e à candidatura conjunta de Portugal e de Espanha ao Mundial de 2030, mesmo que esta não seja para levar até ao fim (e o anúncio da FIFA será só em 2024), a verdade é que, por si só, poderá justificar mais um conjunto de investimentos em infraestruturas que, de outro modo, seriam porventura bem mais questionáveis. Por exemplo, fará sentido continuar a insistir num novo aeroporto internacional no Montijo num cenário em que a aviação nem tão cedo promete recuperar da queda a pique com a pandemia da covid-19? Mas a candidatura ao Mundial 2030 justifica-o.

O mesmo acontece com a ligação de alta velocidade entre Lisboa e Porto. Uma vez que, em caso de organização do Mundial em conjunto com a Espanha, o mais certo é que os estádios portugueses envolvidos pouco mais seriam do que os dos ‘três grandes’.

Na verdade, depois da experiência havida com o Euro 2004 – e dos elefantes brancos que sobraram para as Câmaras de Braga, Aveiro, Coimbra, Leiria e Loulé (cujos estádios propositadamente construídos para aquela competição tiveram e têm uma utilidade muito reduzida e custos de manutenção elevadíssimos) –, julgava-se o país vacinado de tamanhos desmandos pelo menos para umas boas décadas.

Afinal, parece que não. Ou, porventura, portugueses e espanhóis viram nesta candidatura mais uma forma de sacar dinheiro à Europa. 

Mas que seja para valer a pena – não para meter em bolsos sem fundo nem para desbaratar em mais elefantes brancos.