Os sofistas do aborto e da eutanásia

Parece-me que o Parlamento prestou um péssimo serviço à democracia, pois no programa eleitoral dos dois principais partidos não existia nenhuma referência à legalização da morte assistida.

O chumbo da proposta de um referendo sobre a eutanásia foi uma autêntica lição sofista de muitos políticos portugueses. Mas, diga-se, os que ontem foram os sofistas de serviço, noutras ocasiões portam-se como a oposição. Isto é: todos os partidos defendem posições antagónicas quando lhes dá jeito. Vejamos um dos principais argumentos para a não realização de uma consulta popular para validar ou não a morte assistida: «O referendo é um instrumento democrático, mas referendar direitos de todos é pôr esses direitos nas mãos de alguns, o que é inaceitável», disse José Manuel Pureza, do BE. Acho este argumento extraordinário, e se tal fosse verdade nunca se teria feito o referendo pela legalização do abordo, vulgo suspensão voluntária da gravidez. Afinal, não se deve colocar direitos de todos nas mãos de alguns.

Parece-me que o Parlamento prestou um péssimo serviço à democracia, pois no programa eleitoral dos dois principais partidos não existia nenhuma referência à legalização da morte assistida. Logo, numa matéria tão fraturante e ligada aos costumes, teria sido aconselhável um referendo.

Estou perfeitamente à vontade pois votei pela despenalização do aborto e votaria pela legalização da eutanásia. Mas acho que os políticos não devem usar um argumento – e não sei qual foi a posição pública de José Manuel Pureza na questão do aborto – e o seu contrário, quando os temas em questão são rigorosamente iguais. O que valia para defender o referendo do aborto não vale para o referendo da eutanásia? Estranho.

É óbvio que não são só os políticos que têm laivos de sofistas. Veja-se o que se passa na Saúde ,onde diferentes atores defendem posições antagónicas, dependendo do lado que estão. Quem está mais próximo do Governo vê-se obrigado a ‘vender’ as posições que o Executivo apregoa como boas. Quem não tem essas amarras, diz o que pensa verdadeiramente.

E para quem tem dúvidas de que o Governo falhou, se calhar à semelhança de muitos outros europeus, veja-se o que foi escrito em julho e agosto por muitos epidemiologistas e demais profissionais ligados à pandemia.

Escrevam no Google os nomes de médicos independentes e constatem o que diziam que era preciso fazer para não caminharmos na direção do abismo – leia-se estrangulamento dos hospitais. Agora, com o vírus espalhado por tudo o que é sítio, o Governo tenta pôr em prática o que devia ter feito há dois, três meses. Repito, António Costa e os seus ministros podem dizer que na Europa há países que estão em situação bem pior do que nós e são muito poucos os que estão melhor. Mas o Governo sabe perfeitamente que se fomos apontados como um caso de estudo na primeira vaga, se tivesse feito o que foi dito pelos tais especialistas, hoje seríamos um verdadeiro exemplo e a nossa economia estaria bem melhor. Além da sanidade mental de todos. Também aqui me apetece dizer que obviamente que prefiro menos restrições do que proibições, mas se os testes tivessem sido feitos em grande escala e se tivessem sido tomadas medidas de contenção, muito provavelmente estaríamos bem melhor.

E o que dizer de o Governo anunciar para dia 30 a proibição de circular entre concelhos? Porque esperou por dia 30? Foi por causa do feriado do Dia dos Finados ou para permitir grandes ajuntamentos durante este fim de semana em Portimão, no Grande Prémio de Fórmula 1? Também aqui digo que prefiro o circo da Fórmula 1 às fronteiras entre concelhos. Mas depois? Como será? Quantas pessoas, entre as 27 mil esperadas, não estarão infetadas ou irão ficar para depois espalharem o vírus? E porque razão a DGS autorizou mais de quatro mil espetadores num jogo em Braga e no próprio dia diminuiu para metade a capacidade de adeptos? Enfim, as mensagens são totalmente contraditórias, condizendo com os tempos sofistas que vivemos.

vitor.rainho@sol.pt