‘Idade não pode ser único critério’ em situação-limite de cuidados intensivos, segundo parecer do Conselho de Ética

Parecer do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas da Ordem dos Médicos, que em abril não chegou a ser divulgado, é publicado este fim de semana. Ordem justifica com evolução da pandemia em Portugal e na Europa e pressão crescente. Idade, por si só, não poderá ser critério em situações-limite.

Artigo publicado no jornal SOL na edição de 07/11/2020

Numa situação limite de escassez de recursos em medicina intensiva, a situação de cada doente deve ser avaliada de forma individual e os recursos  reservados aos doentes «com maior probabilidade de sobrevivência», não podendo a idade, por si só, a ordem de chegada ou tratar-se de um doente com covid-19 serem fatores de decisão. As recomendações constam no parecer do Conselho Nacional de Ética e Deontologia  da Ordem dos Médicos sobre a pandemia, a que o SOL teve acesso, e que será publicado este fim de semana.

O documento, datado de 4 de abril, foi elaborado pelo conselho no início da epidemia, não tendo sido publicado na altura face à melhoria da situação epidemiológica e diminuição da pressão sobre os hospitais, justificou ao SOL Manuel Mendes Silva,  presidente do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas da Ordem, dado que foi consensualizado na altura que poderia criar-se uma situação de alarme na população. O propósito agora não é esse, salienta, mas emitir orientações éticas num tempo em que vários países enfrentam uma segunda onda de casos de covid-19 superior à primeira fase da epidemia, com os hospitais de novo sob pressão – em Portugal, como noutros países, com mais doentes com covid-19 do que os que estiveram internados na primeira vaga, além dos doentes com outras patologias. O médico indica que a preocupação com as questões éticas tem sido expressa por profissionais no terreno e membros do conselho e sublinha que se trata de um parecer ético e não de um documento técnico, reforçando os «princípios gerais  a acautelar na conduta médica».

O parecer, feito numa altura em que os médicos admitiam a hipótese de Portugal seguir a trajetória de Espanha ou Itália, sendo então necessário seguir os princípios a aplicar em cenários de ‘medicina de catástrofe’, lista diferentes compromissos: o dever de informar, de planear, de cuidar (onde se admite que todos os profissionais, no ativo ou reformados, devem estar faseadamente disponíveis) e de manter a centralidade no doente. «É o doente com a doença e não a doença no doente que deve presidir às nossas decisões», lê-se no texto, que refere ainda o  princípio da reciprocidade, em concreto, o dever de exigir condições para lidar com a pandemia. Quando esse ponto foi redigido uma das preocupações era a disponibilidade de equipamentos de proteção individual, recorda Manuel Mendes Silva, considerando que hoje o contexto é diferente mas mantém-se também o risco de haver mais profissionais infetados e considera que as questões mais prementes continuam a ser a necessidade de informar corretamente a população, o planeamento da resposta e os princípios éticos que poderão guiar decisões em situações mais complexas da pandemia, nomeadamente nos serviços de medicina intensiva, sobre os quais são feitas um conjunto de recomendações. «Não nos podemos esquecer que os serviços de medicina intensiva são para os doentes covid e para os outros doentes. A idade não pode ser critério isolado, nem quem chega primeiro. A serem estabelecidos critérios, devemos ter todos estes fatores em conta», afirma o médico, considerando que até aqui tem havido capacidade para gerir a resposta em cuidados intensivos no países com estas preocupações. 

«Os médicos em Portugal tem elevado sentido ético e nós, os portugueses em geral, temos capacidade de ultrapassar os problemas, temos uma boa capacidade de improvisação. Aconteceu em guerras e catástrofes e conseguimos fazê-lo até melhor que outros países. Até agora consideramos que isso tem acontecido, mas entendemos que deve haver um documento que sirva de base a estas decisões e pelo qual os médicos se poderão também guiar», diz Mendes Silva, acrescentando que essa também sido uma preocupação manifestada pelos colegas de Medicina Intensiva no terreno. «Sabemos que os médicos no terreno sentem esta inquietação. É uma situação que está mais aguda no norte do que em Lisboa e no Sul, mas que tem levado as pessoas a pensar que o caminho da montanha está-se a estreitar e o precipício está à beira», conclui.

Nas recomendações dedicadas à medicina intensiva, o conselho de ética recomenda que, numa situação de escassez de recursos,  todas as decisões de limitação de acesso deverão ser devidamente fundamentadas e «resultar de um consenso da equipa de saúde». A decisão deverá ser comunicada ao próprio e aos familiares e registada no processo clínico. «Nas situações de tomada de decisões que se apresentem de particular e dificuldade e incerteza clínica ou moral, deve ser procurada, tanto quanto possível, uma segunda opinião de pares experientes», lê-se no documento. O parecer recomenda ainda que sejam verificadas, aquando da admissão de doentes, a existência de diretivas antecipadas de vontade; acesso a cuidados paliativo, o seguimento das recomendações existentes sobre sedação paliativa em doentes em deterioração fisiológica e estabelece que, no caso de doentes que morram numa situação de «total ausência ou restrição de visitas, deverá ser garantida, sempre que possível, a possibilidade de se despedir ainda que por telefone dos seus familiares. A assistência espiritual deve ser disponibilizada sempre que solicitada, refere, reforçando ainda a necessidade de os serviços providenciarem apoio psicológico a profissionais.

«A coisa mais difícil para qualquer médico é ter de tomar decisões em relação aos seus doentes quando não consegue oferecer as mesmas condições a duas pessoas que tem diante de si. Não prevejo que isto aconteça já, mas pode vir a acontecer. Depende do controlo que conseguirmos fazer da epidemia», reforça Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, que defende a utilização de todos os recursos disponíveis no país e organização dessa resposta. E dá o exemplo da situação que se viveu no Hospital Padre Américo, em Penafiel, onde nos últimos dias a transferência de doentes para outros hospitais do SNS e do setor privado permitiu aliviar a pressão na urgência, onde chegou a haver mais de 30 doentes internados em macas por falta de vagas em enfermaria. O Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, onde enfermeiros e médicos denunciaram uma situação caótica, que levou a unidade a pedir ajuda à tutela, chegou a ultrapassar os 235 doentes internados, uma situação que não se viveu nesta fase em nenhum outro hospital do SNS. «Se as coisas estivessem organizadas, o Vale do Sousa nunca tinha chegado a situação que chegou. Antes de chegar, os doentes tinham sido encaminhados para outros sítios», diz Miguel Guimarães. 

«Não faltarão meios para as necessidades»

Ontem, a ministra da Saúde visitou a região do Tâmega e Sousa, garantindo que foram assumidos compromissos para que o Hospital de Penafiel tenha os meios necessários imediatamente. «O Hospital de Penafiel está numa área que sabemos que geograficamente está no centro do furacão neste momento. Nenhuma unidade do Serviço Nacional de Saúde [SNS] está livre de sofrer uma pressão», disse Marta Temido, admitindo dificuldades na contratação de profissionais.  «Desde o início da pandemia temos um regime excecional de contratação que permite que sejam contratados todos os profissionais que existem no mercado. Neste momento a situação com que nos deparamos é que o mercado não tem a disponibilidade que teve em outros momentos e há muitos profissionais que ficaram doentes», sublinhou a ministra, reiterando igualmente o papel da população na contenção da epidemia. «Cá fora precisamos de aliviar a pressão a montante porque se houver 10 milhões de infetados não há capacidade de resposta», disse.