Pinóquio, ainda e sempre

Por força das restrições (recolher obrigatório a partir das 13h00) que vigoraram no fim de semana passado em mais de uma centena de concelhos (incluindo o de Lisboa) de elevado risco de contágio da covid-19, tive de passar para as 10 horas da manhã de domingo a sessão de cinema prometida à minha filha mais…

Numa manhã com sol, os cafés estavam à pinha e havia fila para o mercado mais próximo da nossa casa, pelo que seguimos diretos para Lisboa, a caminho do shopping ao lado do magnífico Jardim Amália Rodrigues, com o seu espelho de água, desenhado por Gonçalo Ribeiro Telles no cimo do Parque Eduardo VII.

E lá fomos comprar os bilhetes e as inevitáveis pipocas, sobejando-nos tempo para aviarmos num supermercado às moscas as compras que não pudemos fazer no intransitável mercado, antes de entrarmos na sala – porque, faltando menos de 30 minutos para o início do filme e embora não havendo lugares marcados, éramos os primeiros a comprar ingressos e, portanto, não deveria haver problema em chegarmos em cima da hora.

E não houve. Além de nós, estavam apenas mais duas famílias, ficando a sessão pelo total de 10 espetadores – cinco adultos e cinco crianças.

Ver as salas dos cinemas vazias é desolador, sobretudo quando o filme, como era o caso, merece ser visto.

Pinóquio, o clássico de Carlo Collodi sob cuidada e criativa realização de Matteo Garrone e as interpretações do talentoso Roberto Benigni, recriando Geppetto, e de Federico Lelapi, o miúdo de oito anos que ‘encarnou’ o mais  famoso boneco de madeira, estreou em Itália em dezembro do ano passado e acabou por ser distribuído pela plataforma de streaming da Amazon antes de chegar às salas de cinema de outros países europeus – em França foi para as projeções antes do verão e em Portugal só agora.

Os textos de Cláudia Sobral e de Filipa Chasqueira, no SOL de há duas semanas e da semana passada, dispensam-me de elogiar mais o filme e a história – Pinóquio será sempre Pinóquio e quando na língua original melhor ainda

Não fossem os múltiplos avisos sanitários espalhados por todo o lado naquela sala desoladoramente vazia mais a hedionda máscara obrigatória e, pelo menos durante aquelas duas horas, ter-nos-íamos alheado do mundo depressivo da covid em que estamos cada vez mais mergulhados.

Ele é os números e as notícias da pandemia e os dramas da crise sanitária e a miséria e a crise económica e a crise social e os protestos das vítimas que se julgam mais vítimas do que as outras e os subsídios e apoios reclamados sobretudo por aqueles que são useiros e vezeiros no acesso a esses tais subsídios e apoios e a linhas de crédito bonificadas e recebem milhões e despedem na mesma os trabalhadores que já estiveram em layoff e que beneficiaram de isenções e reduções de TSU e outras benesses e voltam a ser considerados pelo Estado, por esta Administração Central e também pela Local, porque é assim que as coisas funcionam cá por este burgo onde quem trabalha e não refila paga pela medida grande sem apelo nem agravo.

Em março, na primeira vaga da covid-19 em Portugal, vi em casa o filme Contágio, realizado por Steven Soderbergh, em 2011, que, apesar de contar com grandes atores, era simplesmente medíocre mas valia pela extraordinária coincidência entre o argumento de uma pandemia que começara com a transmissão de um vírus de um morcego a um porco num mercado da China e a realidade que quase dez anos depois veio a impor-se-nos e que estamos ainda, e até ver, a viver.

Meses passados, com os ecrãs das televisões e dos cinemas invadidos num fósforo por séries e filmes que correm atrás das histórias da pandemia, com máscaras e mascarados e restrições e desgraças atrás de desgraças, bem vale ainda mais a pena podermos apreciar um Geppetto como o de Benigni ou um Pinóquio como o do adorável Lelapi.

Porque vai feia a coisa.

Não é só pela velocidade a que se propaga o vírus, pelos números que teimam em não baixar, pelas vítimas mortais que não param de aumentar, pela autoridades de Saúde e não só que já não sabem para onde se virar ou o que fazer e o que proibir de fazer.

É pela crueldade da crise. Sanitária, económica, social.

Está a chegar dezembro e o Natal não vai ser como os outros. Até a própria Igreja já vai avisando: há que fazer o sacrifício a pensar no Natal do próximo ano.

Pois sim. Mas sabemos lá o que 2021 nos reserva.

Pinóquio é um boneco de madeira que se diferencia das marionetas por não ter fios nas mãos, nos pés, na cabeça. É livre. E a liberdade, como a saúde, não tem preço.

Em 2020, estamos a perder tudo, a ceder em tudo. Vale que está a chegar ao fim. 

Haja esperança! Mas sabemos lá o que 2021 nos reserva.